O “jornalismo sentado” – parte I

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Tinha eu 26 anos quando decidi deixar o meu trabalho de professor de Português e Inglês no então chamado Ciclo Preparatório (5º e 6º anos) e aproveitar uma oportunidade caída do céu para concretizar um sonho antigo: ser jornalista. Eu tinha esse sonho mas não sabia bem o que era ser jornalista. Só que… imaginava! E imaginava a partir de filmes e séries que via na televisão com enorme prazer: aquelas redações enormes em “open space”, o pessoal todo a correr para aqui e para ali, ritmo frenético ao aproximar-se a hora do fecho, gente a sair, gente a entrar, telefones, telexes, gente a berrar, o relógio sempre ali à frente dos olhos… Sim, era aquilo, assim mesmo, que eu gostaria de vir a fazer! Procurar notícias, investigar, descobrir, sair em reportagem, falar com as pessoas, tentar transmitir aquilo que importava saber…Era mesmo “el mejor oficio del mundo”, como há um par de décadas se lhe referiu Gabriel García Marquez, ele próprio jornalista durante anos e anos.

Eu nunca tinha entrado numa redação a “sério”; imaginara-a a partir dos tais filmes e séries que tanto me cativavam. E lá fui, todo contente, expectante, com a energia dos meus 26 anos a transbordar por todos os lados. Mas aquilo, afinal, não era bem o que eu imaginara. Passados os primeiros dias de revelação e de descoberta, comecei a perceber que, afinal, passava imenso tempo sentado a uma secretária. Sentado. Horas e horas, dias inteiros, trabalhando em cima de textos que chegavam da agência noticiosa e que, seguindo as instruções do chefe, eu ia sintetizando, cortando, reescrevendo. Ou seja, fazendo trabalho em segunda mão, pouco ou nada saído de mim. Volta e meia, quase só para fazer de conta que estava vivo, lá fazia um telefonema para tentar acrescentar uma coisinha ou outra ao texto da agência (aquele ainda não era o tempo dos telemóveis, nem da Internet, nem do e-mail, nem sequer dos banais computadores: foi há 40 anos, e parece que já foi há uma eternidade, só havia máquinas de escrever e tipografias a chumbo!…).

Mas, então, ser jornalista era aquilo? Só aquilo?… E então a tal vertigem de uma coisa nova a cada dia, e a corrida contra o tempo, e ir lá fora e voltar e sair outra vez para descobrir mais um detalhe, e a procura de algo novo, novo, novo, não de histórias requentadas ou de telexes de agência (por sinal escritos, eles próprios, por jornalistas…)? Era aquilo? Era, então, estar sentado a uma secretária, a fazer trabalho em segunda mão ou umas coisitas rápidas por telefone?

A história não acabou aqui, claro. Felizmente para mim, ela é um pedaço mais longa e levou-me a experimentar muito jornalismo “a sério”, quase como aquele dos filmes, pelo menos uma vez por outra, de tal modo que acabei por não querer trocar esta profissão por nenhuma outra – e quando deixei de ser jornalista ativo, passei a ser professor de… futuros jornalistas. Mas essa história não interessa muito para o caso. O que interessa, sim, é o espectro do tal “jornalismo sentado” que me ficou sempre muitíssimo marcado cá por dentro – e que continua a ser um assunto de grande importância.

Há mil razões que podem invocar-se – e que se invocam, de facto – para manter os jornalistas colados à cadeira da secretária, sobretudo neste nosso tempo em que a secretária tem “tudo” o que é preciso para, supostamente, contactar com o mundo todo: computador, telemóvel, Internet, e-mail, Skype, Zoom, Facebook, Twitter, WhatsApp… Para quê, então, ir “lá fora”, para quê ir falar com pessoas cara a cara, para quê ir ver com os próprios olhos? Isso é só, dizem quase todos, gastar tempo e deitar dinheiro fora. Sentado à secretária, o jornalista “avia três ou quatro notícias” numa hora; se for para ir fazer um serviço “lá fora” (e só um…), é logo uma manhã ou uma tarde inteira que se “perde”, quando não um dia… e os transportes, e os engarrafamentos, e os custos com gasolina ou com táxi, e almoçar fora durante o serviço… enfim, tudo a sugerir as enormes vantagens (sobretudo económicas) de fazer “jornalismo sentado”. É mais fácil, é mais barato, o tempo rende mais, a produtividade aumenta, faz-se mais com menos gente… E com a crise que por aí vai, já sabemos, não há grande volta a dar! Também aqui não falta quem fale da tal TINA (“There Is No Alternative”)…

Não, este não é um assunto fácil nem se resolve com dois passes de mágica e umas tiradas meio demagógicas. A crise existe, de facto, é muito séria, e fazer jornalismo menos “sentado” e mais “de pés ao caminho”, tem o seu preço: basicamente requer mais pessoas e mais dinheiro. Tão simples e tão complicado como isso… Mas o segredo, se assim se pode falar, é tentar que esses gastos não sejam propriamente um “custo”, mas um “investimento”. Ou seja: uma aposta num modo de fazer jornalismo mais próximo da gente, mais vivo, mais original, mais criativo, mais investigativo também, com a expectativa de que isso venha a ser, pouco a pouco, reconhecido pelos públicos a quem se destina – e em nome dos quais se faz. E que os públicos valorizem e recompensem a qualidade, a diferença, o toque humano do trabalho, sobretudo numa época em que até já há robôs a fazer notícias em jeito de piloto automático…

Numa entrevista recente à revista “Jornalismo & Jornalistas”, perguntaram ao jornalista e estudioso Fernando Correia, referência incontornável deste nosso meio profissional, se o recurso constante à Internet não teria um lado perverso, causando “uma certa preguiça” aos jornalistas. Ele respondeu assim: “Não é o jornalista que tem preguiça de ir ao terreno, é a imposição do funcionamento dos jornais que o exclui. Resumindo, a máquina agora está montada para os jornalistas não precisarem de ir ao local. Aquilo que aprendemos nos manuais – procurar, investigar, falar com as pessoas… – hoje quem defenda isso pode ser acusado de ser da idade da pedra. A forma de a informação ser fabricada dispensa, ou melhor, obriga a que o jornalista fique sentado.”

Pois é, “a máquina está montada” para que seja cada vez menos preciso o jornalista ir ao local. A questão é saber o que é que se perde não indo ele ao local… Mais ainda: se não é para ir ao local, se não é para ver e ouvir pessoas, se é apenas para fazer uns telefonemas rápidos, pesquisar dados num “site” e trabalhar em cima de uns quantos “tweets” ou “posts”, não estará o jornalista a tornar-se cada vez mais… dispensável?

(Continua.)

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.