O jornalista é ou não é notícia?…

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Onde se evocam velhos chavões sobre o jornalista, se apontam situações em que o jornalista aparece indevidamente à frente da notícia e se dá nota de uma belíssima reportagem noticiosa sobre… jornalistas.

Reprodução da página online do DN

Por que raio é que “o jornalista não é notícia”, como desde há tantos anos estamos habituados a ouvir?…

É claro que o jornalista não deve ser notícia quando a notícia não é sobre ele… Se ele está a fazer uma notícia sobre outrem, é bom que fique de fora e que não ceda à tentação de se meter à frente de toda a gente, fazendo de si próprio o protagonista que não é. Antigamente, os jornais mais tradicionais tinham por costume, quando publicavam uma reportagem com várias fotografias, meter sempre o jornalista numa delas (invariavelmente de lápis e bloco-notas em punho), mas apenas para atestar que “o repórter esteve lá”, esteve mesmo, não inventou nem soube das histórias por telefone, coisas desse género que às vezes se fazem… Mas isso não era fazer do jornalista notícia, era apenas fazê-lo testemunha direta do assunto. Outra coisa era quando o jornalista se entusiasmava com o seu ofício e passava a maior parte da reportagem a contar o que tinha e não tinha feito, o difícil que fora, os passos que dera, o perigo que correra, o cansaço que sentira, o que comera ou onde dormira, tudo à volta de si próprio, quase esquecendo a gente ali à volta e os eventos a reportar. Como se o público estivesse mais interessado nas suas peripécias do que no assunto que estava a ser noticiado… Disso ainda vamos tendo alguns tristes exemplos hoje em dia, por exemplo quando jornalistas com menos noção das coisas ou mais facilmente deslumbráveis são “enviados especiais” a cenários de guerra e nós ficamos a saber tudo deles na guerra, mas quase nada da guerra propriamente dita. Como se fosse isso o que importa a quem lê e vê e ouve…

Saber falar, saber ouvir

E há também as entrevistas, claro. Uma entrevista a uma pessoa costuma ter por objetivo mostrar essa pessoa, o que ela tem a dizer, o que ela pensa, como se posiciona face a isto ou àquilo. Essa pessoa é a notícia. Mas por vezes, ao acompanharmos uma entrevista na televisão, duvidamos se o que estamos a ver é uma entrevista ou um debate entre dois pares. Além de haver jornalistas que gostam muito de nos dizer o que pensam sobre aquilo que estão a perguntar ao entrevistado, também há os (ou são os mesmos…)  que gostam mais de falar do que de ouvir a pessoa a quem fazem perguntas. E eles falam, falam, interrompem, discutem, contrariam, interrompem outra vez, até dão umas reprimendas ao entrevistado aqui e além…  Pronto, lá temos o jornalista a ser notícia. E nestes casos consabidamente não é. Não devia ser.

Esta história do “não ser notícia” também se deve, em certas circunstâncias, a algum espírito corporativo e auto-defensivo que faz com que os jornalistas desta publicação ou desta rádio ou desta televisão tenham, digamos, algum pudor em falar do que se passa nos jornais vizinhos, ou nas rádios, ou nas televisões. Mesmo quando há problemas, sarilhos, factos merecedores de notícia, nem sempre os camaradas de profissão se sentem à vontade para falar dos outros camaradas, sobretudo se a matéria for crítica. Hoje é destes para aqueles, amanhã às tantas é daqueles para estes, vamos lá deixar a coisa passar sem grande barulho… E há ainda aquele velho hábito de as corporações insistirem em “não lavar roupa suja na praça pública”, resolvendo antes os seus problemas lá dentro, em reuniões discretas e fechadas, de modo a que não transpareça mal-estar cá para fora. Mais uma vez, aqui o jornalista não é notícia, embora devesse sê-lo.

História com gente dentro

Sim: por vezes o jornalista deve mesmo ser notícia. E o jornal. E a rádio. E a televisão. E o “site”. Se passamos a vida a escrutinar tudo quanto é instituição, empresa ou coletivo, por que raio não devemos escrutinar também os órgãos de comunicação social e os profissionais que lá trabalham, quando o assunto merece? Por que não trazer para o público tudo aquilo que seja de interesse público? E há muitos problemas que afetam ou envolvem os jornalistas que são de evidentíssimo interesse público. Veja-se, por exemplo, o que está a passar-se há meses com o Global Media Group – o grupo que detém títulos tão relevantes como o Jornal de Notícias, o Diário de Notícias, a TSF, O Jogo, o Açoriano Oriental… Tem-se falado muito do grupo, das empresas, das safadezas, dos salários em atraso, do espectro do fecho, da incerteza quanto ao próximo futuro. E aqui os jornalistas têm sido bastante notícia. E muito bem.

Mas a jornalista Fernanda Câncio, do Diário de Notícias (DN), foi ainda mais longe neste caminho e publicou recentemente uma belíssima reportagem sobre… os jornalistas. Não já só os salários em atraso, a greve, a luta, a falta de transparência a incerteza, a safadeza, mas os jornalistas enquanto pessoas que também são. E que nós, vendo à nossa frente todos os dias ou lendo o que escrevem sobre o mundo, conhecemos tão pouco. Fernanda Câncio fez com os jornalistas aquilo que tantos jornalistas fazem sobre outros grupos de pessoas, mas que raramente fazem sobre o próprio grupo profissional: uma reportagem viva, com muitas histórias dentro, com memórias e testemunhos e vivências, com gente que ri e chora, gente que já foi pequena e agora é grande, gente que trabalha e sonha… É dessas histórias que se faz também o jornalismo, “histórias com rosto humano”, como costumamos dizer. Histórias que lemos com gosto e que nos ensinam muito de muitas coisas – no caso, até sobre o tanto que está em causa à volta deste ensarilhado Global Media Group.

Desta vez, os jornalistas foram notícia. Fernanda Câncio fez uma “viagem ao coração (ferido) de uma redação em luta” – no caso, a redação do DN. Desta vez, pôs os jornalistas a dar as respostas, quando eles costumam fazer as perguntas. Fez jornalismo. Conta ela, a propósito: “Houve quem torcesse o nariz a esta reportagem, quem a visse como “umbiguista”, quem não vislumbre interesse em relatar, descobrir, dar a conhecer e sentir quem somos, ouvir a nossa respiração. Para mim, que insisti nisto — porque, como para vários dos que aqui falaram comigo, o jornalismo é sobretudo decifrar pessoas, narrá-las, contar-lhes a história, dar testemunho, partir, em grande angular, do individual para o geral — esta reportagem foi também uma descoberta, como todas devem ser”. E para nós, leitores, foi-o também.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.