O jornalismo já não é o que era… Que fazer?

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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O jornalismo está a mudar a cada dia que passa. Podemos fazer de conta que é só um sonho mau e talvez volte tudo “ao normal” em breve, ou podemos olhar para as novas realidades e tentar perceber por que apareceram e como se têm desenvolvido. E ver o que podemos também aprender com elas…

“Sim, continuo a fazer jornalismo, todos os dias. Mas não, já não sou jornalista.” Esta frase, retirada de um escrito recente de António Tadeia (na plataforma Substack), chamou novamente a minha atenção para um tema atual e bastante sensível: quem é ou não é jornalista?, o jornalismo só é feito por jornalistas?, por onde passam hoje as fronteiras do que é ou não é jornalismo?

O assunto tem vindo à baila em circunstâncias as mais diversas.

Por exemplo, comentou-se muito, durante as campanhas eleitorais, se o humorista Ricardo Araújo Pereira deveria, nas entrevistas que fez na televisão, tratar todos os líderes partidários por igual (como é mister do jornalismo) ou podia convidar apenas quem lhe apetece (como é normal num programa de entretenimento). Não sendo ele jornalista, será que estava ali, de algum modo, a fazer jornalismo?

(Curiosamente, um outro humorista muito conhecido, Jon Stewart, autor do célebre “The Daily Show”, protagonizou há anos um debate semelhante nos EUA. Inquéritos de opinião perguntaram então a jovens americanos qual o jornalista mais influente do país e uma grande percentagem indicou precisamente Jon Stewart – que não é, e não quer ser, jornalista, mas cujo programa televisivo foi considerado por esses jovens o contributo mais importante para a sua (in)formação política…)

Também no último Congresso dos Jornalistas Portugueses, em Janeiro de 2024, o tema proporcionou uma das mais animadas sessões ao convocar para a mesma mesa jornalistas de meios de comunicação ‘tradicionais’, e jornalistas da área do chamado “lifestyle” (no caso, da revista TimeOut), a quem a Comissão da Carteira (CCPJ) admite ter de recusar o título profissional, sob a alegação de que o que ali se faz não é exatamente jornalismo – de acordo, pelo menos, com as regras  estabelecidas na lei portuguesa. Na altura comentou-se até que ponto um escrito sobre um hotel, um restaurante ou um bar pode ser considerado “jornalismo” quando é publicado num jornal tipo PÚBLICO ou Expresso, mas já é considerado “promoção comercial” se sai numa publicação tipo TimeOut ou NIT. Interessa o escrito em si ou o local em que sai? E interessa se quem o assina é um jornalista encartado ou não? E como clarificar tudo isto?…

A explosão dos “podcast”

Outra das inovações que mais se têm desenvolvido na paisagem informativa do espaço público é a dos “podcasts”. Estará aqui talvez um exemplo elucidativo de como o jornalismo se vai escrevendo hoje por muitas e variadas linhas. Há “podcasts” sobre a atualidade que são feitos por jornalistas encartados, mas há muitos outros, igualmente sobre ‘o que se passa no país e no mundo’, que nos dão preciosas informações, interpretações e opiniões, mas que não são da autoria de jornalistas. E há-os sobre política, sobre desporto, sobre economia, sobre cultura, sobre humor, sobre… tudo! A este propósito, um estudo realizado em Portugal pela GfK Metris para o Grupo Impresa, e divulgado há tempos pelo jornal Expresso dizia que “nos últimos seis meses de 2023, o consumo de podcasts cresceu 33%”. Trinta e três por cento. E acrescentava: “Globalmente, 34% dos inquiridos ouvem todos os dias cerca de 1h10minutos (…)”. Esta parece ser uma tendência que veio para ficar e que todos os dias cresce. Cruza-se também com os caminhos daquilo a que tradicionalmente chamamos jornalismo…

O mesmo se diga dessa nova realidade que são as/os “influencers”. Estávamos acostumados a ver essas novas personagens do espaço público associadas apenas ao mundo da moda e às novas estratégias que as marcas adotaram para promover e aumentar as vendas. Publicidade com objetivos comerciais, portanto. Mas não é só disso que se trata. Há “influencers” que não têm propósitos comerciais, que não querem vender produtos de moda no mercado, mas que querem, como o nome diz, influenciar os debates políticos e, mais genericamente, a informação. Na última campanha eleitoral para as legislativas, por exemplo, todos os líderes partidários foram entrevistados por “youtubers”… e com grande impacto em termos de visualizações.  Nas suas habituais previsões sobre tendências em cada ano que começa, o prestigiado Nieman Lab escreveu, a propósito de 2024, que é tempo de os editores começarem a perceber (e a aprender) como cada vez mais “influencers” produzem informação que as pessoas consideram muito próxima de si e ligada às suas comunidades – e, por isso, frequentemente olhada como mais confiável do que o jornalismo tradicional. Olhar para tudo o que se passa nas redes socias (nos média socias, como com mais propriedade dizem ingleses e americanos…), resistindo a desqualificar tudo como apenas “lixo”, é muito necessário para quem se interessa por comunicação.

Nem de propósito: quando escrevia este texto, chegou-me a surpreendente notícia de um jovem “influencer” de Chipre que decidiu candidatar-se ao Parlamento Europeu, usando para isso a força dos seus 2,6 milhões de seguidores no Youtube, e que, com surpresa para ele próprio, acabou por ser eleito eurodeputado… Mais um sinal dos tempos.

Refira-se, ainda, neste contexto, uma linha de investigação académica que tem analisado, ultimamente, aquilo a que chama “jornalismo periférico”, sobretudo pela mão do investigador austríaco Folker Hanusch. Estes trabalhos olham para o muito que está a mover-se nas fronteiras do jornalismo, desafiando a sua definição tradicional e alargando o conceito a novos atores, novas práticas e novos formatos que também contribuem para os fluxos de informação na esfera público.

“Não sou jornalista, mas faço jornalismo…”

Muitas novas realidades, muitas perguntas, muitas dúvidas nem sempre fáceis de resolver, mas uma certeza desde logo: isto está mesmo a mudar. Por muito que nos custe admitir, as coisas já não são exatamente o que eram há um par de anos, quando se conseguia distinguir perfeitamente o que era jornalismo e o que não era – e quando o jornalismo (entendido como trabalho de recolha, elaboração e difusão pública de informação sobre a atualidade) era apenas feito por jornalistas, integrados em empresas de comunicação social.

Hoje, é tudo mais complexo. Veja-se o desabafo de António Tadeia: “Todos os dias tenho a minha irritação com o “jornalismo” autorizado a que vou sendo exposto nas redes sociais, onde o que manda é a busca de escala capaz de tornar viáveis as operações que menos o merecem e permitir que o “jornalismo” continue gratuito, que a pagá-lo estão as resmas de visualizações que ele consegue.” Face a tudo isto, decidiu assumir esta posição: “Não sou jornalista de papel passado. Não renovo a minha carteira profissional há cinco anos. Continuo a fazer exatamente aquilo que mandam as regras do jornalismo, mas não tenho o direito a dizer-me jornalista (…)”.

Ou seja, parece poder dizer-se que há cada vez mais gente a fazer algo que pode considerar-se jornalismo, apesar de não ser jornalista, e também há gente que, sendo formalmente jornalista, faz algo que nem sempre poderá considerar-se jornalismo…

O jornalismo, de facto, já não é o que era. Se olharmos para os produtos e serviços concretos que nos aparecem por aí, e não para o sítio onde são disponibilizados ou para o título profissional de quem os produziu, percebemos uma razoável diversidade de ofertas – e nem todas más, e nem todas apenas com propósitos comerciais, e nem todas sem escrúpulo ético. Claro que, pelo meio, não falta quem tente apanhar a boleia do carimbo ‘jornalismo’, que continua a ser socialmente mais prestigiado do que qualquer rede social, e à sombra dele venda muito gato por lebre. Mas meter tudo dentro do mesmo saco, só para preservar as empresas, os títulos e os autores tradicionais, ignorando (quando não desprezando com arrogância) tudo o que tanta gente faz de modo inovador nos circuitos alternativos abertos pela era digital, é um erro. Até porque, como sabemos, as tiragens e audiências dos jornais têm baixado dramaticamente a cada dia que passa, mas as possibilidades de acesso a informação (nem sempre muito boa, mas nem sempre muito má…) aumentam e diversificam-se a um ritmo muito acelerado. Ora o jornalismo ‘tradicional’ e os jornalistas ‘encartados’ só têm vantagens em tentar perceber o que se passa hoje à sua volta, no que toca à circulação de informação, pois é nesse novo contexto que podem e devem encontrar o seu lugar específico e diferenciado.  Sim, que o ‘jornalismo’, tal como o entendíamos, não desapareceu e decerto não vai desaparecer – mas já não é o dono único do lugar e vai coexistir cada vez mais com outras formas que também se podem reivindicar de alguma forma de jornalismo. E são novos caminhos capazes de tocar públicos que já não se reveem no jornalismo ‘tradicional’ e há muito deixaram de o frequentar.

Neste momento, e com tudo isto em mudança, é a própria definição do conceito de jornalismo – e das suas fronteiras cada vez mais fluídas – que merece debate sério. Fazer de conta que não se passa nada é ficar fechado dentro das muralhas de um velho castelo sem vista para o exterior…

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.