“Coronavírus – Graça Freitas admite 1 milhão de infetados em Portugal”. Foi este, tal e qual, o principal título de primeira página do semanário Expresso no passado dia 29 de fevereiro. Ou seja, numa altura em que não tinha aparecido nenhum caso de infeção no nosso país (surgiria dois dias depois, a 2 de março) mas em que, naturalmente, a ansiedade e o medo começavam a espalhar-se entre nós, pois já se conhecia a rápida evolução da epidemia em muitos países. Imagine-se, então, o impacto de um título destes: nas horas seguintes, multiplicaram-se os comentários e as críticas, e a própria Graça Freitas (Diretora-geral da Saúde) se sentiu na necessidade de vir a público explicar e contextualizar o que verdadeiramente tinha dito.
E o que tinha dito ela, na entrevista ao Expresso? Cito: “… estamos a fazer cenários para uma taxa total de ataque de 10% [um milhão de portugueses] e assumindo que vai haver uma propagação epidémica mais intensa durante, pelo menos, 12 a 14 semanas. Temos estudos que nos dizem que 80% vão ter doença ligeira a moderada e só 20% terão doença mais grave e 5% evolução crítica”. Na introdução à entrevista, de resto, a própria jornalista que a assinava tinha escrito assim: “Graça Freitas admite que, no pior cenário, um milhão de portugueses possam vir a ser infetados, 20% dos quais com gravidade”.
Percebe-se facilmente que o título de primeira página vai, por assim dizer, bastante mais longe do que o texto. Afinal, Graça Freitas estava a falar de cenários, afirmando mesmo que esse seria “o pior dos cenários” – ou seja, se tudo corresse o pior possível em todos os domínios. Mas foi precisamente esse “pior possível” que o jornal foi buscar para título, apresentando-o como uma espécie de antevisão bastante plausível.
É o que os meios de comunicação frequentemente fazem: escolher, de várias informação disponíveis, a “pior possível” para fazer o título. E apresentá-la de modo seco, direto, sem qualquer explicitação de contexto, sem detalhes que ajudem a matizar os factos, sem enquadramento do que se está a dizer – e porquê. Comenta-se frequentemente que os jornalistas não gostam de títulos “cinzentos”, que preferem os títulos assertivos, claros, do género “ou preto ou branco”, mesmo sabendo que eles deixam muito por dizer sobre o assunto: quem quiser que leia o texto na íntegra, e aí já se explica tudo “tintim por tintim”, coisa que um título de cinco ou seis palavras nunca pode fazer… O título é (só) para chamar a atenção, dizem.
O problema é que títulos destes chamam a atenção pelos piores motivos. Têm impacto, suscitam grande curiosidade, são partilhados, convidam à leitura do texto que lhes deu origem, mas depois vai-se a ver e… o que o título diz não é propriamente o que está no texto. E é esse o princípio do sensacionalismo: dar a entender que se tem ali uma informação bombástica, prometer revelações sensacionais em grandes parangonas, e depois perceber que, afinal, não é bem assim: é só um cenário, e se calhar dos menos prováveis, é só uma hipótese, é só uma opinião de alguém, é só uma informação parcelar, no meio de várias outras. O sensacionalismo promete o que não tem para dar, esperando que os leitores se fiquem apenas pela leitura do título (e vão logo contar ou replicar pelas redes sociais, “já viste isto?, vamos ter um milhão de portugueses infetados com o vírus, foi a própria diretora-geral que garantiu, é verdade, até vem no Expresso…”).
É muito difícil fazer títulos. E é uma tarefa bem melindrosa, sobretudo quando estamos perante temas sensíveis para a opinião pública. Os danos causados por um título incorreto ou pouco rigoroso (ou deliberadamente malicioso, que também há quem faça disso…) ultrapassam a informação que lhe deu origem e deixam para segundo plano os eventuais méritos do trabalho jornalístico que está por trás. Acabam também por desqualificar o público leitor, dando a entender que ele vai “engolir”, sem duvidar ou questionar, o que estão a oferecer-lhe através do título (e só do título). E infelizmente é isso que sucede muitas vezes.
Um título deve ser curto e direto. Mas nem sempre é fácil pôr numa frase simples uma ideia complexa.
Um título deve ser claro e assertivo. Mas nem sempre é possível contar só “a preto e branco” uma realidade cheia de cores.
Um título deve ser apelativo, comunicativo. Mas não pode valer tudo apenas para criar um “sound bite” que se deseja viral.
Em resumo: é difícil fazer bons títulos, mas isso é, de certo modo, uma pedra de toque do bom trabalho jornalístico.
P.S. Quem faz os títulos de primeira página de um jornal normalmente não é quem escreve os textos que lhe deram origem. Os próprios jornalistas queixam-se com frequência que o editor ou o diretor, ao desenhar a primeira página, fez um título com que eles próprios não concordam. O certo é que, enquanto autores do texto, são eles que acabam por ter os seus nomes associados aos títulos abusivos, pagando por um erro que não cometeram. Daí que esta matéria requeira respeito profissional e sentido de responsabilidade também de quem edita e de quem pagina.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.