Dos jornais em papel ao papel dos jornais

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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É bem possível que os jornais diários em papel não durem muito mais tempo. É bem possível que não resistam ao passar de mais uma geração. Mas isso não significa que morram todos os jornais em papel. E muito menos significa que morram os jornais. Ou o jornalismo.

Um trabalho recentemente publicado pelo NiemanbLab a propósito do presente e futuro dos jornais em papel, dá o mote para umas breves reflexões. Vamos, então.

Em The Villages, uma zona residencial da Flórida essencialmente destinada a gente reformada (e com uma população total de 129.752 pessoas), o jornal diário local vende, em média, 49.183 exemplares diários. Em papel. Ou seja, um em cada 2,6 habitantes compra o jornal. É obra…

Por comparação, na zona metropolitana de Atlanta (com uma população de 6.930.423 pessoas, ou seja, 50 vezes mais do que The Villages), o jornal diário local vende, em média, 49.243 exemplares diários. Ou seja, os mesmos… O que significa que, aqui, é um em cada 141,4 habitantes que compra o jornal todos os dias. Que diferença de números!…

Que quer isto dizer? Aquilo que por experiência própria vamos constatando, também cá pela terra: que o jornal diário em papel ainda tem uma razoável saída junto das populações acima dos 50/60 anos, mas vende pouquíssimo (e a caminho do nada) junto de gente mais nova. Arrisco dizer que há muitíssimos jovens que nunca na vida leram (ou sequer folhearam) um jornal em papel. Mesmo aqueles que consomem notícias regularmente. Entre os ecrãs do computador, do tablet e, sobretudo, do smartphone, está tudo o que é preciso para todas as leituras. De jornais, claro, mas também de revistas e até de livros. Com a vantagem de, em muitos casos, poderem trazer junto alguns sons e algumas imagens em movimento, coisa que o papel não traz…

A conclusão retirada no artigo em referência sugere que a tendência vai continuar e a publicação de jornais diários em papel se aproxima do fim: “(…) All of these numbers are going to zero. As the case of The Villages shows, print has become a niche product, overwhelmingly for senior citizens. Every year, some of them will die, and some others will have a grandchild help them figure out an iPad.”

Os nativos digitais e os seus ecrãs

As estatísticas são eloquentes (ver Figura 1): de 2010 até 2021, as versões em papel dos quatro diários portugueses de expansão nacional passaram de um total de 280 mil exemplares diários para apenas 93 mil cópias. É uma baixa de 67 por cento! E o semanário Expresso também viu o papel baixar cerca de 50 por cento.

Figura 1

Fonte: APCT (Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação)

Se olharmos para os principais jornais diários americanos (ver Figura 2), são ainda mais expressivas as quebras que sofreram nos últimos 20 anos, em alguns casos ultrapassando os 90 por cento…

Figura 2

Fonte: Press Gazette, Audit Bureau of Circulations (2000) e Alliance for Audited Media (2022).

Esta tendência aparentemente inexorável tem a ver com custos (um jornal em papel fica mais caro a produzir e é mais caro no quiosque), com quebra de receitas publicitárias (os anunciantes vêm migrando crescentemente para as edições digitais, pois é para aí que estão a migrar os leitores) e, sobretudo, com novos hábitos de consumo de informação. É mais cómodo ler um jornal, a qualquer hora e em qualquer lugar, num ecrã de computador ou de telemóvel; também é mais fácil aceder a ele, comentar uma notícia, partilhar um texto ou uma imagem com os amigos, seguir-lhe as pegadas nas redes sociais, compará-lo com o que sai noutros jornais, etc. Aquele velho hábito de estar sentado na mesa do café ou no sofá de casa a folhear calma e silenciosamente as páginas de um jornal é, cada vez mais, um hábito antigo, que tem a ver com um tempo e com um contexto geracional. Os “nativos digitais” não se reveem minimamente nesse velho hábito e, pelo contrário, dão à comunicação e ao consumo e partilha de informação um formato totalmente novo, onde não cabe jornal em papel. (Em muitos casos, aliás, também não cabe sequer jornal digital… Não cabe jornal, ponto.)

Novos modos de ler – e ouvir, e ver…

Note-se que tenho falado sempre de jornal DIÁRIO. Embora a tendência de troca da versão em papel por versão digital seja também notória em alguns semanários (veja-se o caso do Expresso), entendo que as coisas não se colocam do mesmo modo. Há muito quem pense, na indústria, que o jornal diário em papel está condenado, por razões de racionalidade económica, de preocupação ecológica e de mudanças sócio-culturais, mas que versões mais espaçadas de uma publicação em papel (semanário, quinzenário, mensário) farão todo o sentido e poderão até ganhar um novo mercado, embora não com uma expressão “de massas”, como foi o jornal tradicional. Seria uma espécie de produtos “gourmet”, eventualmente mais caros para fazer face aos custos reais, mas especializando-se num modo de fazer sofisticado e exigente, permitindo uma experiência de tipo bem diferente da do consumo de informação (“breaking news”) no meio digital. Acredito que se irá caminhando por aí, e com vantagens a vários níveis.

Curiosamente, o modelo “em papel” continua ainda a estar muito presente nas nossas cabeças, até porque estas coisas não mudam de um dia para o outro. Não é por acaso que continua a haver muito jornal que vende assinaturas digitais e que distribui as suas páginas em formato “pdf” – que não é mais do que um exato modelo em papel, só que não impresso… Há até quem diga que faz jornais digitais, pelo simples facto de os distribuir em formato “pdf”, via Internet. Ora uma página de jornal em “pdf” não tem nada de digital, a não ser o facto de ser distribuída por meios digitais e não mão a mão. Mas a organização do jornal, o seu desenho, a sua paginação, o seu modo de titular e de apresentar as coisas, tudo isso é tal qual o jornal em papel. Jornal digital é outra coisa: já não tem páginas no sentido tradicional do termo, não é lido do mesmo modo, não é organizado sequer página a página, desenvolve-se em fluxo contínuo, incorpora diversas linguagens, permite ligações para outros domínios (hipertexto), etc., etc. Este, sim, é o tipo de jornal com que as gentes mais jovens se identificam e no qual gostam de navegar. Foi neste ambiente que nasceram, é nele que se sentem confortáveis – não numa página ‘fechada’ de jornal, seja impressa num papel, seja impressa num “pdf”. São coisas muito diferentes.

Mudam-se os tempos…

O fim dos jornais diários em papel já é prenunciado há muitos anos. Quando me iniciei como jornalista profissional no Jornal de Notícias, nos anos 80 do século passado, já havia quem ironizasse com a (sempre povoadíssima) página da necrologia: “Olha, lá se foram mais uns leitores do JN…”. A ideia era que tais leitores não seriam substituídos por novos, pois aquele modelo de jornal parecia ser sobretudo para velhos. Morrendo estes, haveria de ir morrendo aquele. E ainda não tinha começado a revolução digital… As notícias desta extinção terão sido algo exageradas, como se vê, mas a descida contínua do número de exemplares em papel (de jornais diários, repito) não parou nem parece que vá parar.

Mas isso não significa – e isso é o mais importante – que desapareça o jornal, que desapareça o jornalismo. O suporte físico de um jornal não é o que o define essencialmente, além de que ele evolui com o tempo, com as mudanças tecnológicas, com as inovações, com os hábitos de vida das pessoas. Hoje há mais possibilidades de fazer um jornal – não menos. E isso é bom para o jornalismo, desafiando-o a tentar de diversos modos, conforme os diversos públicos, ‘chegar’ às pessoas e tentar, com a qualidade da informação que produz, mostrar-lhes a sua relevância para a vida em sociedade. Esse, sim, é o papel do jornalismo…

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.