“Há um elefante no meio da sala”. Dúvidas sobre se uma notícia é uma notícia ou um anúncio disfarçado (e pago como tal) não são novas, mas existem cada vez mais – e face a modelos cada vez mais “criativos”. A questão mexe com o estatuto legal a que estão obrigados os jornalistas e afeta a transparência que o público legitimamente espera. Não adianta disfarçar, negar ou adiar. O elefante tem de ser encarado de frente, pois já partiu alguma louça…
A recente notícia de que uma jornalista e uma estagiária da publicação TimeOut viram recusada pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) a revalidação do seu título profissional – um pré-requisito obrigatório para quem faz jornalismo no nosso país – levantou uma polémica que não tem muito de novo, mas que fica quase sempre escondida entre meias palavras, suspeitas inconfessadas e silêncios comprometidos. É o que me dizia há dias uma jornalista, ao trocar impressões sobre o tema: “Há um elefante no meio da sala e só não o vê quem não quer, ou quem prefere fazer de conta que está tudo bem e assobiar para o lado…”.
Olhemos, então, para o elefante. De acordo com a lei e com a ética, um jornalista não pode nem deve fazer publicidade ou “marketing”. Ponto. A informação jornalística rege-se por critérios de verdade, independência e rigor, procurando servir o interesse público e não um qualquer interesse privado. Isto significa que não se compram nem se vendem notícias, reportagens, crónica ou entrevistas; compram-se e vendem-se anúncios, devidamente identificados como tais, para não suscitarem qualquer confusão nas pessoas. E nenhum jornalista pode fazer um anúncio publicitário ou um texto promocional, coisas que têm origem numa proposta comercial e que são pagas (em dinheiro ou em espécie) como tais. Informação jornalística e promoção publicitária são dois fluxos de comunicação no espaço público, igualmente nobres e legítimos, mas que não podem nem devem confundir-se, pois são diferentes no princípio, no meio e no fim. Do ponto de vista dos profissionais que neles trabalham, são atividades atualmente classificadas como incompatíveis.
Produtos híbridos
Posta assim a questão, parece tudo muito simples, clarinho como água. Mas não. Desde sempre, e sobretudo nos últimos anos, esta fronteira aparentemente inquestionável entre a esfera editorial e a esfera comercial tem vindo a ser discutida e contestada, por boas e más razões, de modo que se multiplicam os apelos a uma maior “flexibilidade”, a uma menor “rigidez”, a uma “maior compreensão das novas realidades em que vivem os média”, a uma “modernização de mentalidades”. A tal fronteira começa a dissipar-se, a abrir brechas, a multiplicar as situações de exceção, e os produtos que tradicionalmente eram “ou isto ou aquilo” começam, eles próprios, a misturar-se, a confundir-se, a tornar-se cada vez mais híbridos.
“Hibridização” é um termo-chave para compreender estas novas tendências. A pouco e pouco vai ficando difícil perceber se esta história lida num jornal foi decidida pelo próprio jornal ou resultou da encomenda de alguém, se aquela sugestão de restaurante feita numa televisão foi resultado de uma escolha autónoma ou foi paga pelo dono do restaurante, se aqueloutra entrevista a um operador turístico feita por uma rádio ou por uma publicação online resultou de uma opção editorial ou de uma simples “parceria comercial” – quer dizer, uma compra. Vai ficando difícil perceber onde acaba a notícia e começa a publicidade. E tudo isto, por vezes, escrito e assinado (quando é assinado…) por jornalistas profissionais, jornalistas detentores de carteira profissional (se não o são, o caso é diferente, desde logo no plano legal).
Acresce que este movimento de crescente hibridização dos conteúdos informativos nos meios de comunicação social é algo que, em si mesmo, também gera controvérsia e pede debate: há quem a olhe como uma perversão da autêntica informação jornalística, algo que simplesmente é preciso denunciar e recusar sem apelo, mas há também quem a encare como uma nova forma de lidar com os processos e produtos comunicativos da era digital, sugerindo que se discuta e repense a própria definição de jornalismo e das fronteiras que o devem ou não delimitar. Na sequência, isso implicaria também discutir e repensar o que é que significa ser jornalista hoje, que (in)compatibilidades sinalizam a profissão, que limites se impõem ao seu ofício e que novas modalidades de comunicação devem caber debaixo do seu (alargado) chapéu. Um tema sensível mas candente, que não vale a pena desqualificar com duas penadas rápidas, invocando os velhos princípios que nos habituámos a ter como referências inabaláveis. As sociedades contemporâneas são mais complexas e colocam novos problemas que têm de ser olhados de frente. (Um interessante estudo produzido pelo Obercom em 2020, por solicitação da CCPJ, carreia vasto material para esta reflexão).
Uns e os outros
É neste contexto global que me parece interessante pegar no exemplo das jornalistas da TimeOut, acima referido. Quando se soube que a CCPJ tinha indeferido a revalidação das suas carteiras profissionais, supostamente porque o trabalho que fazem (e que podemos associar ao domínio do chamado “lifestyle”) não seria jornalismo, mas publicidade ou promoção comercial de determinadas marcas ou estabelecimentos, logo se levantaram vozes a perguntar: “Mas são só aquelas jornalistas que o fazem?… É só a TimeOut?… ‘Cadê’ os outros?…”. De facto, não se conheciam publicamente (embora pareçam já ter ocorrido algumas vezes no passado recente) casos de não revalidação ou de retirada da carteira profissional por motivos semelhantes aos do caso TimeOut. Mas, em contrapartida, qualquer um de nós é capaz de apontar exemplos de textos (assinados por jornalistas) que informam sobre (mas, direta ou indiretamente, também promovem) produtos, hotéis, restaurantes, bares, livros, discos, vinhos, viagens, resorts, clínicas, etc. etc. E vemos isso na TimeOut mas também no Público, no Expresso, no Jornal de Notícias, no Observador, na TVI, na SIC, na TSF, no Diário de Notícias, na Visão, na Sábado… E então? É tudo a mesma coisa? Ou há situações e situações? E como é que se clarifica o assunto? Quais são os critérios para atuar aqui mas não atuar ali? A quem se mantém a carteira profissional e a quem se retira? Com que justificação?
Quando isto não é claro, fica aberto campo a todas as confusões – logo, a todas as impunidades e a todos os abusos. Daí que pareça útil que a própria CCPJ, na medida das suas possibilidades (e do seu estatuto), vá dando os esclarecimentos que se considerem necessários e faça, assim, alguma pedagogia destes processos. Ou seja, que estimule a urgente discussão pública destas matérias com o envolvimento de todos os implicados, que não são exclusivamente – embora sejam na primeira linha – os jornalistas.
Empresas frágeis
Tendo em vista essa discussão, aqui deixo quatro notas:
1) O Estatuto do Jornalista, logo no seu artigo 1º (“Definição de Jornalista”), diz que não pode ser considerado como tal quem faça trabalho “ao serviço de publicações que visem predominantemente promover atividades, produtos, serviços ou entidades de natureza comercial ou industrial”. Tanto quanto sei, é com base neste ponto que têm sido indeferidos pedidos de carteira profissional de jornalista a pessoas que trabalham em publicações consideradas tipicamente promocionais (já houve outros casos antes da TimeOut). O problema é que, tomadas as coisas literalmente, um texto de características semelhantes pode conduzir a um juízo diferente conforme é dado à estampa na TimeOut ou na Fugas/Público, na Dica da Semana ou na Evasões/Jornal de Notícias, na NIT ou no Observador ou na TVI… Dadas as ambiguidades a que isto se presta, parece que pode estar chegado o tempo de olhar também para as leis que nos regem e para eventuais melhorias (ao que sei, a própria CCPJ iniciou esse processo de consulta, entretanto interrompido com a queda do Governo).
2) A proliferação de modelos muito “criativos” de publicidade disfarçada pode ver-se em quase todos os meios (ainda que em diferentes graus) e é justificada pelas empresas como uma consequência da queda brutal da publicidade tradicional, que hoje vai parar na quase totalidade às plataformas tecnológicas (com Google e Facebook à cabeça). Jornais, revistas, rádios e televisões queixam-se de serem quase obrigados a aceitar estes novos formatos híbridos, pois de outro modo arriscam a própria sobrevivência. E insinuam também que, se não aceitam essas propostas comerciais, o vizinho concorrente vai aceitá-las de certeza… Independentemente de algum exagero que possa haver aqui, ou de abusos cometidos a coberto de uma realidade difícil, é verdade que a fragilidade económica da quase totalidade das nossas empresas de comunicação social não pode ser ignorada e constitui, a prazo, uma ameaça à diversidade e ao pluralismo de informação que uma sociedade democrática merece. Este perigo também faz parte da equação que temos pela frente. Do mesmo modo, não pode ser escamoteada a crescente precariedade laboral de muitos jornalistas, que faz com que se vejam obrigados a aceitar trabalhos que não se ajustam bem às suas exigências profissionais e éticas. E que em circunstâncias mais favoráveis nunca aceitariam…
O que parece – e o que é
3) Não são novas as suspeitas de que certos trabalhos publicados nos média, ligados sobretudo a consumos de lazer e entretenimento, decorrem mais de uma “parceria comercial” do que de uma decisão editorial. Ou seja, aparecem porque há quem pague para que eles sejam publicados. Mas não são todos: há alguns que são, genuinamente, escolhas desinteressadas dos jornalistas ou dos seus editores, com um propósito apenas informativo e de serviço (ao) público. Só que nem sempre é fácil descobrir as diferenças. E quando surge a dúvida sobre se haverá aqui ou ali publicidade disfarçada, essa suspeita acaba por tocar toda a gente e todas as publicações. Quem prevarica fica contente, pois no meio da confusão pode escapar entre as gotas da chuva – ou então pagam os “justos” pelos “pecadores”, em termos de imagem pública. Para distinguir o trigo do joio, é importante que as regras sejam claras e bem fundamentados os critérios para atribuição (ou recusa) de carteira profissional aos jornalistas. Não fazer nada, só porque o assunto é difícil e melindroso, também não parece grande solução.
4) Algumas destas questões seriam evitadas se a publicação de matérias promocionais se restringisse aos chamados “conteúdos patrocinados”, que hoje também existem na maioria das publicações, mas que, utilizados com o devido escrúpulo, resolveriam dois problemas: não serem nunca da autoria de jornalistas e aparecerem devidamente identificados como conteúdo publicitário que não se confunde com as matérias editoriais. Infelizmente, nem tudo corre bem neste domínio, pois a diferenciação gráfica e a identificação como publicidade nem sempre são rigorosas, e isso não acontece por acaso. O que os anunciantes pretendem, nestas formas híbridas de promoção, é precisamente que os textos e as imagens “pareçam” jornalismo, para com isso beneficiarem do prestígio e da credibilidade que lhes estão associados. Ou seja, para que os seus anúncios “não pareçam” publicidade – e daí serem disfarçados de notícias ou reportagens. Esta pressão acaba não só por aligeirar as exigências associadas aos “conteúdos patrocinados”, mas também por abrir cada vez mais a porta a formas “criativas” de promoção comercial que pouco ou nada se distinguem dos conteúdos jornalísticos.
Em síntese: o que está em causa é, essencialmente, uma questão de confiança. O público tem o direito de saber, em cada momento, se o que está a ler/ ver/ ouvir é informação jornalística ou promoção comercial. Não é que uma seja boa e a outra seja má. É que são coisas diferentes. E têm de ser transparentes – tanto no conteúdo como na autoria. Só com transparência se pode ganhar e manter credibilidade. E só com credibilidade se pode merecer a confiança das pessoas. Jornalismo independente, credível, confiável é um bem de primeira necessidade de que não podemos desistir e que não podemos deixar diluir-se em terrenos de ambiguidade. Todos ganharemos com maior clareza.
Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.