Teletrabalho, eficiência e… umas dúvidas pelo meio

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

0
1849

Entre “do things right” e “do the right things” pode haver uma diferença assinalável, que vai da resposta mecânica a uma ordem que se recebe até à decisão refletida sobre por que fazer o que fazer. Quer isto dizer que trabalho eficiente pode nem sempre significar o trabalho de qualidade a que um profissional legitimamente aspira. Vem esta conversa a propósito do teletrabalho a que (também) o jornalismo se viu – e pode ver-se de novo – obrigado a recorrer.

Numa altura em que, por razões bem conhecidas, se fala da hipótese de termos de regressar ao teletrabalho durante uma nova temporada, vale a pena refletir um pouco sobre essa “novidade” que caiu de repente sobre as redações e sobre as rotinas dos jornalistas.

Alguma investigação foi já feita em Portugal sobre isso, como é o caso de um estudo intitulado “Os Efeitos do Estado de Emergência no Jornalismo no contexto da pandemia Covid-19” – desenvolvido a partir de um inquérito a que responderam 890 jornalistas portugueses. Na sequência, a revista “Comunicação e Sociedade”, da Universidade do Minho, publicou, no seu volume 39 (2021),  três artigos desenvolvidos sobre os resultados desse mesmo estudo.

Mais recentemente, o reputado Reuters Institute for the Study of Journalism (uma instituição cujo “Digital News Report”, publicado anualmente, é hoje um instrumento de consulta obrigatória) fez sair um interessante estudo sobre as redações em mudança nestes tempos de pandemia. “Changing Newsrooms 2021”, assim se chama o trabalho, feito com base num inquérito e em entrevistas a uma série de responsáveis editoriais de 42 países diferentes. Trata de várias matérias, mas a que trago aqui hoje é a que se prende com o teletrabalho (ou “trabalho remoto e trabalho híbrido”, para usar a mais rigorosa terminologia do estudo).

As grandes conclusões que saltam à vista (ver Gráfico) sugerem que esta nova maneira de os jornalistas trabalharem à distância, por força da pandemia, teve dois efeitos considerados relativamente positivos – aumentou a eficiência no trabalho e melhorou o bem-estar dos trabalhadores – e três efeitos considerados relativamente negativos – pioraram as coisas no que toca a criatividade, a colaboração e a comunicação no seio das redações.

 

Desde logo, apetece questionar em que consiste uma melhoria de “eficiência no trabalho”, quando diminuem a criatividade, a colaboração ou a comunicação. Talvez o facto de os inquiridos neste estudo terem sido genericamente diretores e editores de meios de comunicação – e não jornalistas “de base” – ajude a explicar os resultados. Ser mais eficiente, na ótica de quem manda, corresponde muitas vezes a fazer as coisas depressa e bem, sem as questionar, sem complicar, sem pensar muito no que está em mãos. É fazer e pronto, passar a outra… Algo que até se pode perceber mais ou menos num contexto de trabalhos mecânicos, rotineiros, repetitivos, mas que dificilmente se ajusta ao trabalho de um jornalista, que tantas vezes tem pouco ou nada de mecânico e que, pelo contrário, ganha muito se se lhe juntarem boas doses de criatividade, de comunicação e de colaboração com os colegas. Pode demorar mais tempo a acabar a tarefa, pode ‘complicar’ um pouco, pois implica pensar no que se está a fazer e porquê assim e não assado, mas o produto final tem certamente mais qualidade. Ou seja, a eficiência não é, sobretudo nestes contextos, um valor absoluto.

“Somos melhores quando estamos juntos”

Há quem distinga eficiência de eficácia nestes termos, que apresento de modo muito esquemático: eficiência significaria “fazer bem as coisas” (“do things right”), enquanto eficácia significaria “fazer as coisas certas” (“do the right things”). A primeira não se questiona sobre o que fazer; trata-se de fazer aquilo que nos mandam, rápida e corretamente. A segunda pergunta-se, antes de fazer, se é aquilo que deve ser feito, e como deve ser feito; ou seja, pensa-se, decide-se e depois executa-se. Transposto isto para o jornalismo, parece claro aquilo que pretendo dizer: fazer dos jornalistas meros executores de tarefas mais ou menos mecânicas pode dar grandes índices de produtividade, grandes níveis de eficiência, mas não parece ser o caminho para que se faça jornalismo de qualidade – nem para que se envolva os profissionais na co-decisão daquilo que há para fazer, tratando-os como autênticos profissionais, bem formados e treinados, autónomos, reflexivos, e não apenas como peças de uma engrenagem.

E é por isto que, em meu entender, o espaço coletivo de uma redação faz tanta falta ao trabalho jornalístico. Este é, no essencial, um produto coletivo, resultante de múltiplas interações a diversos níveis. No final, claro que é sempre um(a) jornalista que, em nome individual, escreve um texto, faz uma foto, prepara uma peça. Mas antes de lá chegar houve muito trabalho em equipa, tanto formalmente (reuniões de redação, reuniões de secção, organizações de agenda, decisões de edição…), como informalmente (a conversa com a colega que se senta ao lado, a troca de impressões com camaradas de outra secção, o recurso ao saber ou à experiência de colega mais velho, um simples tomar café enquanto se discute o que passa na televisão ou no Twitter…). E é deste caldo, feito de muita comunicação e colaboração – aquelas que tanto se perdem no teletrabalho – que vai nascendo e medrando a criatividade – aquela que muito se pode ressentir de um modelo de trabalho isolado e à distância.

Um jornal, um noticiário, uma revista, um programa informativo, não são um mero somatório de contributos individuais feitos cada um no seu cantinho, sem grande conversa com o resto das pessoas. Pode fazer-se assim uma revista com um conjunto de textos de opinião e comentários, por exemplo. Mas não se faz assim uma publicação noticiosa, com entrevistas, reportagens, notícias grandes e pequenas, análises, perfis, crónicas, editoriais. Ou seja, uma publicação autenticamente jornalística, resultado de um intenso trabalho de colaboração e interação num coletivo, desde o momento de conceber o que fazer até às etapas seguintes da pesquisa, elaboração e edição: quem faz o quê, como, quando e onde, com que enfoques, com que grau de desenvolvimento, com que meios gráficos complementares, etc. Um genuíno trabalho de equipa. De equipas. É isso que dá ao jornalismo a força, o carácter, a especificidade, o toque diferenciador face a publicações individuais como um blogue, um “site” pessoal ou uns “posts” em redes sociais. É isso que o torna mais responsável e responsabilizável a todo o momento. E é por isso que há redações – e normalmente organizadas em “open space”, para facilitar e induzir, até fisicamente, esta constante interação. Como dizia uma das editoras entrevistadas para o estudo do Reuters Institute: “There’s no doubt in my mind we are better when we are together”.

Como é evidente, alguns aspetos do teletrabalho podem melhorar pontualmente a vida dos jornalistas: perde-se menos tempo e dinheiro e paciência nas deslocações para o trabalho, organiza-se o tempo com maior liberdade, encontram-se momentos de silêncio que podem também fazer falta, ganha-se (quando se ganha…) maior disponibilidade para estar com a família. Neste sentido, dispor de alguns períodos em regime de teletrabalho, em função precisamente dos trabalhos que se tenha em mãos, pode trazer vantagens. Mas isso implica, desde logo, que os enquadramentos laborais, tanto no plano legal como no das práticas empresariais, se adequem às novas realidades. Por outro lado, não pode – não deve – transformar-se este recurso de exceção num modelo corrente e sistemático. Tudo o que fica dito atrás sugere que o pouco que se ganha com o “trabalho remoto” não tem comparação com o muito, muitíssimo que se perde com a mudança.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.