Diz que é uma espécie de entrevista…

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Fazer “jornalismo à distância” é, hoje em dia, uma quase banalidade. E dá muito jeito, convenhamos. Gasta-se menos tempo e dinheiro em deslocações, usa-se mais texto escrito, que é fácil de copiar e colar, faz-se o trabalho mais depressa, o ‘smartphone’ com acesso à internet facilita todas as ligações para quase toda a gente em quase todo o sítio… Que mais é preciso?

Aqui há tempos, neste mesmo espaço, falei da importância, para o jornalismo, de “ver e
ouvir as pessoas cara a cara”. E acrescentava: “(…) infelizmente, cada vez mais as redações de todos os meios de comunicação, grandes ou pequenos, locais ou nacionais, escritos ou audiovisuais, acabam por conduzir quase todo o trabalho jornalístico a este beco estreito e curto: que o trabalho se faça depressa, sem sair da secretária, e usando apenas um telefone e um computador com acesso à net”.

Dizia isto a propósito da reportagem. E coisa parecida gostava de dizer hoje a propósito da entrevista, pois também por este género nobre do jornalismo se vão multiplicando as tentações de fazer tudo à distância. E tudo por escrito… Há uns anos, ainda antes dos computadores e da Internet, havia já duas discussões recorrentes quando se tratava de fazer, para a imprensa, uma entrevista a alguma personalidade relevante:

  1. se era aceitável enviar as perguntas à pessoa e permitir que ela respondesse por escrito;
  2. se era aceitável (no caso de a entrevista ter sido feita oralmente) mostrar o texto à pessoa antes de publicar e permitir que ela fizesse alterações ao que tinha dito ao jornalista.

Ambas as questões têm que se lhe diga, pois subvertem uma das características mais próprias (e mais sedutoras) da entrevista: a interação, direta e espontânea, entre entrevistadora e entrevistada. O que é específico da entrevista como género jornalístico é, precisamente, o facto de se tratar de um diálogo, de uma conversa destinada a dar a conhecer a pessoa entrevistada e as suas opiniões sobre determinados temas. Claro que se pode pedir à pessoa que escreva um texto com as suas opiniões sobre determinados temas e o entregue à jornalista ou o mande para o jornal. Mas a isso chamamos depoimento, ou comentário, ou análise, ou o que queiramos – mas não entrevista. Porque não tem conversa. Porque não dá ao jornalista a possibilidade de retorquir, de insistir, de questionar, de voltar atrás e à frente, de interagir com quem está ali a falar.

Mesmo quando se vai para uma entrevista com um guião pré-preparado, muitas vezes as perguntas mais interessantes (e as respostas…) são as que não estavam no guião, antes foram suscitadas no próprio momento, pelo fluir da conversa. Além disso, fazer tudo isto em registo oral permite manter uma espontaneidade e uma coloquialidade que o registo escrito nunca tem. Por isso é que sabe bem ler uma entrevista recolhida oralmente e depois passada a escrito, mas mantendo as marcas típicas de um diálogo. Por isso é que uma ‘entrevista’ recolhida por escrito se arrisca a ser monocórdica e menos interessante, pois o jogo de interação pergunta-resposta está ausente. É só um fazer-de-conta.

Precisamente por esta marca de espontaneidade é que me parece pouco aceitável dar o texto a ler à pessoa entrevistada e permitir-lhe fazer alterações ao que disse antes (exceção, claro, a clarificações de pormenor ou correções factuais). Dar uma entrevista implica confiar em quem a faz, sabendo que o que sai no jornal é sempre muito menos do que aquilo que se disse na conversa – o que implica cortes e escolhas. Mas esse é precisamente o ofício de jornalista, e espera-se que o faça bem…. Acrescentar à entrevista o que não se disse antes, ou cortar o que se disse, mas agora já não se quer dizer, remete-nos, como disse acima, para outro tipo de texto jornalístico – não para uma verdadeira entrevista.

Com as tecnologias de que hoje dispomos para contactar toda a gente em todo o sítio, tem-se banalizado o recurso ao e-mail para fazer ‘entrevistas’. A pessoa entrevistada não se importa nada, pois assim sente que controla o que será publicado. A jornalista não se importa nada, pois assim não tem o trabalho de gravar uma conversa, e depois transcrever a gravação para texto escrito, e depois cortar partes, arranjar o texto, editar… Com o material recebido por e-mail, é só “copy-paste” e já está. Além do mais, não se corre o risco de ter de ouvir a pessoa entrevistada dizer que “não disse isso”, pois está tudo escrito pelo seu punho.

Tudo mais simples, portanto. Tudo mais rápido. Tudo mais barato. Tudo mais cómodo. Só que… isso não é uma entrevista. É um depoimento escrito pedido a alguém, mas que não conduziu a um diálogo, a uma conversa, a uma troca de palavras e ideias. Não resulta da interação efetiva de duas pessoas, mas apenas da justaposição de dois textos escritos que não se cruzam. A pessoa ‘entrevistada’ agradece, o jornalista agradece, mas… o público leitor é que sai a perder. Mal por mal, ao menos que se telefone…

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho