Teletrabalho: o “novo normal”?

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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E assim de repente, como quem não quer a coisa, o teletrabalho passou a ser quase obrigatório para quase todos os jornalistas. De um momento para o outro, sem grande preparação nem aprendizagem, mudou-se o sítio onde se trabalha para o sítio onde se mora, passou-se a falar com toda a gente à distância, as reuniões transferiram-se para o espaço de ecrãs de computador ou telemóvel, em modo de videoconferência, as rotinas ficaram todas de pernas para o ar… Mas foi necessário continuar a fazer o jornal todos os dias, a garantir os noticiários regulares de rádio e televisão, a alimentar o “site” com as últimas de todo o lado – e isso fez-se até com redobrado esforço, que a pandemia criou uma enorme vontade e necessidade de saber (mais sobre) o que se passa. Passados os primeiros meses, começou a discutir-se se este modelo – o do trabalho à distância, feito a partir do espaço individual de cada um(a) – seria, afinal, o futuro para os jornalistas. Ou seja, o tal “novo normal”.

Vantagens? Uma série delas: não se perde tempo no trânsito, não se gasta dinheiro em transportes, há flexibilidade no horário de trabalho, a pressão e o barulho envolventes são menores, rentabiliza-se melhor o tempo à medida de cada qual… E quem gere uma empresa jornalística até pode imaginar quanta poupança faria se tivesse as pessoas todos a trabalhar em casa: poupança em rendas, poupança em equipamentos, poupança em materiais, poupança em ajudas de custo, poupança em deslocações em serviço, poupança em pessoal de apoio…

Mas há o outro prato da balança. Depois de olharmos para o que se ganha / se poupa neste cenário, convém olharmos para o que se perde. E é muito.

No plano laboral, parece um tanto enganadora a ideia de que, trabalhando sozinho em casa, o jornalista terá muito mais liberdade e à-vontade, fazendo quase “o que quer, como quer, onde quer e quando quer”. Muitas experiências que têm vindo a ser partilhadas entre profissionais sugerem que, pelo contrário, se trabalha mais horas (não há horários, a pausa para as refeições é frequentemente interrompida, está-se permanentemente a ser solicitado por telefone, e-mail ou rede social) e em condições mais complicadas (o novo espaço de trabalho nem sempre é o mais adequado, há família com quem se está, filhos que querem espaço ou atenção, dificuldades logísticas ou técnicas que têm de ser resolvidas pelo próprio, à maneira de um “faz-tudo”…). É um engano julgar que, neste cenário, o jornalista se aproxima do modelo do profissional liberal, que está entregue a si próprio; pelo contrário, parece que fica ainda mais proletário do que no “velho normal”. E o que poupa em deslocações gasta a mais em energia, em telemóvel, em computador, em Internet…

No plano tecnológico, a mudança de armas e bagagens para o espaço virtual acelera a tendência de despersonalização de contactos que tem vindo a notar-se crescentemente no jornalismo. Se antes já tanta gente se queixava de demasiado “jornalismo sentado” – dias inteiros sem se sair da redação, meses sem se fazer uma reportagem no terreno ou uma entrevista olhos nos olhos, horas e horas a produzir notícias “em segunda mão”, a partir do que dizem outros órgãos de comunicação, ou as agências noticiosas, ou as redes sociais –, neste cenário de teletrabalho tudo fica ainda pior. Comunicações todas à distância, contactos quase só através da(s) rede(s), circulação circular de informação entre meios que deviam ser alternativos ou complementares, mas que se tornam cada vez mais iguais, maior dependência do que agências de comunicação e “marketing” distribuem, enfim, pouca gente direta, real e palpável – que é onde estão as notícias…

No plano socioprofissional, o virtual desaparecimento do espaço coletivo que é uma redação significa um rude golpe para o jornalismo tal como ele, em minha opinião, deve ser entendido. Um jornal (seja ele impresso, publicado online, difundido pela rádio ou emitido pela televisão) não é uma simples justaposição de trabalhos jornalísticos individuais, cada um desenvolvido, de modo autónomo e independente, numa espécie de ilha. Pelo contrário, um jornal é eminentemente um produto coletivo, o resultado de muitos trabalhos em equipa aos mais diversos níveis, tanto formais como informais. Uma redação é, por definição, um espaço de discussão e debate, que ora se faz a dois ou a três, ora no âmbito de uma pequena secção, ora no plano mais alargado de todo o coletivo. Numa redação fala-se, pergunta-se, pensa-se em conjunto, duvida-se, protesta-se, discute-se, corrige-se, rema-se um barco que é só um, mas que tem muitos (e nem todos iguais, ou sendo uns mais iguais que outros, mas adiante…) remadores.

Mesmo quando os tempos são de se estar mais calado, quando faltam mais reuniões, quando se anda demasiado a correr, quando a pressão do fecho quase nem deixa pensar duas vezes, mesmo aí o espaço da redação é um espaço coletivo, que leva consigo um tipo de partilha (mais ou menos barulhenta, mais ou menos silenciosa) que nunca se consegue com cada jornalista sozinho em casa – por mais sofisticadas que sejam as máquinas que nos põem virtualmente à distância de um clique, mas (ainda) não nos teletransportam.

São duas conceções de jornalismo que aqui se confrontam. Não é indiferente o modelo de organização que se escolhe para fazer um jornal. Um somatório de textos individuais, feitos por cada um(a) no espaço isolado da sua casa, é uma coisa; um conjunto de textos que resultam da dinâmica coletiva de uma equipa, que são de algum modo pensados, elaborados, escritos, reescritos, discutidos e digeridos por uma redação, é outra coisa. E esta outra coisa perde-se em boa medida se o “novo normal” para os jornalistas for o teletrabalho. É claro que o teletrabalho também tem as suas vantagens e dá muito jeito em certos contextos. As maravilhas da ciência e da técnica que o tornam hoje possível são de um valor inestimável e ninguém quererá, naturalmente, prescindir delas. Facilitaram-nos muito a vida, sobretudo nos meses mais agudos da pandemia, e têm potencialidades espantosas no domínio da comunicação. Só que, como em tudo, convém manter algum equilíbrio no modo como tiramos partido desses recursos. Teletrabalho em situações pontuais, em casos de necessidade ou de vontade por pequenos períodos, eventualmente até com rotação entre as pessoas, é muito útil e pode até ajudar a fazer funcionar melhor um órgão de comunicação. Mas que isso não seja feito sacrificando (ou desvalorizando progressivamente) o espaço de uma redação, que é – mesmo quando nem tudo lá corre tão bem como os seus ‘residentes’ gostariam – o sítio onde bate o coração de um jornal.

Em tempo: algumas destas questões são abordadas num trabalho de investigação realizado recentemente, a partir de um inquérito dirigido aos jornalistas portugueses com o objetivo de compreender melhor o modo como viveram profissionalmente durante o estado de emergência. O relatório final pode ser consultado aqui: http://www.sopcom.pt/ficheiros/relatorio-COVID-19-Jornalismo.pdf.


Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.