O “jornalismo sentado” – parte II

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Se há género que atrai um jornalista, que o puxa, que o seduz, que o leva até ao fim do mundo, é a reportagem. Mas a reportagem mesmo, não os trabalhos que dela só têm o nome… Costumo brincar sobre isso com os jovens estudantes de jornalismo, dizendo-lhes que há uma “prova real” muito fácil para perceber se estamos perante uma reportagem ou uma outra coisa, por mais respeitável que seja: “Consegues fazer isso sentado à tua secretária, sem sair daí? Sim?… Então não é uma reportagem!”

Há muitos géneros jornalísticos, e todos podem ser bem ou mal apreendidos e desenvolvidos. Os jornais, as rádios, as televisões, os sites informativos, têm uma enorme variedade de trabalhos jornalísticos, muitos deles de indiscutível qualidade, e que nada têm a ver com reportagem. Podem ser notícias, podem ser entrevistas, podem ser comentários, podem ser inquéritos, podem ser perfis, podem ser crónicas… E muitos desses trabalhos podem, sem grande dificuldade, ser feitos a partir da secretária, apenas com recurso a um computador, um telemóvel, uma ligação à Internet. Pesquisa-se material, identificam-se eventuais fontes, contacta-se esta e aquela para recolher informação suplementar, pensa-se, escolhe-se, organiza-se e… escreve-se. Mas para a reportagem não é exatamente a mesma coisa. Nem pode.

Pergunta imaginária: “Imagina que vais fazer uma reportagem sobre a limitação de pessoas no acesso às praias, por causa da pandemia. Por onde pegavas no tema?”

Resposta: “Ia ver o que saiu nos jornais sobre esse assunto, consultava a legislação, tentava falar com alguém do governo sobre isso, recolhia dados da Direcção-Geral de Saúde, arranjava os contactos de algum concessionário de praia para uma pequena conversa telefónica, tentava falar com alguém que tenha ido recentemente a uma praia muito procurada…”.

Muitas pistas de trabalho, perfeitamente razoáveis. Falar com este, falar com aquele, ligar a esta, mandar mail àquela… E no fim, com todos os dados recolhidos e muitas frases para usar em discurso direto, escrever uma boa notícia – melhor, um “artigo” sobre o tema, aquilo a que com mais propriedade se deveria chamar “inquérito” (tradução direta do termo francês “enquête”, que se usa para nomear este género noticioso, composto de uma multiplicidade de dados e de depoimentos sobre um determinado assunto – e que é, a par da notícia simples, o género porventura mais presente nos nossos meios de comunicação).

Ora não falta quem chame a isto uma… reportagem. Só que, para ser verdadeiramente uma reportagem, falta-lhe um elemento essencial: falta que o jornalista vá à praia! Por muito que ele fale com as pessoas mais indicadas, por muito que ele contacte quem sabe do assunto, por muito que ele explique tudo o que está em causa, falta-lhe ir lá, ir mesmo ao local, ver com os seus olhos, ouvir com os seus ouvidos, aperceber-se do ambiente, falar com as pessoas no próprio sítio, ‘apanhar’ aquilo que só se apanha quando se está lá… e depois tentar mostrar aos leitores. “Mostrar”, não “explicar”. Dar a ver, a ouvir, a sentir, a perceber. Algo que nunca se consegue fazer sentado a uma secretária, falando com pessoas à distância, muitas vezes sem sequer poder olhá-las nos olhos. Quem estuda estas questões costuma sublinhar que a reportagem é o género jornalístico “dos cinco sentidos”. Não se trata apenas de recolher dados, informações, palavras. Trata-se de “ir lá”, de apreender o mais possível do que ali se passa, não apenas com recurso à linguagem verbal, mas também à multiplicidade de modos de comunicação não-verbal. E é com tudo isso que, depois, se construirá um texto que vai, também ele, para além da materialidade das palavras. Importa o que se viu, o que se cheirou, o que se ouviu, o que nos tocou, o que nos surpreendeu, o que deixou impressões cá por dentro… Com isso se escreve a reportagem. O que não é fácil. Pelo menos não tão fácil como a tal notícia que se faz com um par de informações e outros tantos depoimentos recolhidos ao telefone.

É talvez por não ser fácil (além de não ser rápida nem barata…) que a reportagem anda muito arredia dos nossos jornais. Como aqui escrevia no mês passado, parece mesmo que “a máquina está montada” para que seja cada vez menos preciso o jornalista ir ao local, assim se economizando em meios humanos e materiais… mas economizando também em jornalismo bom, diverso, criativo, capaz de agarrar mais as pessoas, aproximando-as das situações sobre que se pretende reportar. O que, repito, não é fácil. Exige técnica, exige reflexão, exige sensibilidade para o contacto humano, exige perspicácia de apreensão, exige capacidade de ligação das coisas, e exige “engenho e arte” na elaboração do texto. Quase apetece dizer: isto não é para qualquer um… E quando se diz que todos somos um pouco jornalistas, em parte até pode ser verdade – mas só em parte.

Volto a Gabriel Garcia Marquez e ao seu discurso sobre “El mejor oficio del mundo”, proferido em 1996. É muito interessante a inversão de hierarquias que ele propõe quanto ao trabalho jornalístico, precisamente porque há certos géneros que são mais difíceis e mais exigentes do que outros. E todos sabemos que o topo da carreira para os jornalistas costuma levá-los a escrever editoriais ou peças semelhantes, quando é certo que a escrita de um texto de opinião sobre um assunto da atualidade não é propriamente uma coisa inacessível ao comum dos mortais. Em contrapartida, todos sabemos também que são os novatos, os estagiários, os “miúdos”, que mais frequentemente são mandados em reportagem para fora da redação, nas mais diversas circunstâncias, quando é certo que a escrita de uma reportagem tem bastante que se lhe diga e muito não-jornalista diria de imediato que nem saberia como fazer uma coisa dessas. Isto parece, então, estar ao contrário, como experimentou (e como defende) o próprio Garcia Marquez:

“El periódico cabía entonces en tres grandes secciones: noticias, crónicas y reportajes, y notas editoriales. La sección más delicada y de gran prestigio era la editorial. El cargo más desvalido era el de reportero, que tenía al mismo tiempo la connotación de aprendiz y cargaladrillos. El tiempo y el mismo oficio han demostrado que el sistema nervioso del periodismo circula en realidad en sentido contrario. Doy fe: a los diecinueve años –siendo el peor estudiante de derecho – empecé mi carrera como redactor de notas editoriales y fui subiendo poco a poco y con mucho trabajo por las escaleras de las diferentes secciones, hasta el máximo nivel de reportero raso.”

Lá está: pode começar-se sentado à secretária, escrevendo competentes notas editoriais, comentários ou opiniões. Mas depois, largue-se a cadeira, ponha-se pés ao caminho, procure-se a vida e a gente lá fora, e suba-se verdadeiramente na carreira, procurando chegar a esse topo de excelência profissional que é ser… repórter.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.