O jornalismo e os “estados de exceção”

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Temos assistido, nos últimos tempos, a um crescendo de protagonismo público de “pivots” de jornais televisivos. As intervenções frequentes de alguns deles, não tanto ligadas ao trabalho jornalístico que estão a apresentar/comentar, mas mais a um tipo de intervenção cívica com um tom marcadamente emocional (apelos a que o público faça isto ou aquilo, histórias da sua vida pessoal ou familiar, remoques sobre o que aqui ou ali se passou de errado, divagações poéticas sobre as agruras por que estamos a passar ou sobre o futuro que almejamos, etc.), têm suscitado comentários diversos, uns a favor, outros nem tanto.

Quem concorda, entende que a grande visibilidade dos “pivots” e a sua popularidade junto de muitos milhares de pessoas faz deles um veículo inestimável na defesa de causas para que se pretende mobilizar as pessoas – aliás, não é por acaso que diversas campanhas publicitárias oficiais ligadas à prevenção da Covid-19 têm utilizado caras conhecidas da televisão portuguesa. Quem não concorda, ou pelo menos levanta reservas, questiona se essa é a função de um jornalista enquanto apresenta um jornal e se, vivendo o país em “estado de emergência”, também o jornalismo está autorizado a funcionar, por assim dizer, em “estado de exceção”, desvalorizando as suas regras básicas de distanciamento, moderação, objetividade e rigor.

Não é um assunto fácil. E costuma tornar-se mais visível quando o país está envolto em situações de grande impacto emocional, como sucede agora com o terrível surto pandémico que estamos a sofrer, ou como sucedeu no passado, por exemplo, com a enorme mobilização nacional em torno do Campeonato Europeu de Futebol de 2016. Neste último caso, recordarão alguns que chegámos a ver um “pivot” televisivo começar a apresentar o seu jornal da noite com um cachecol da seleção nacional de futebol ao pescoço. E discutiu-se muito na altura se essa “causa nacional” – a da vitória da seleção portuguesa numa competição desportiva – era de molde a unir-nos todos na comemoração e a fazer-nos esquecer as (normais) boas práticas do jornalismo. E falava-se de “nós”, de “ganhámos”, de “fizemos”, alinhando sem rebuço por um dos lados da contenda, esquecendo que o jornalismo costuma sempre, e bem, olhar para os lados todos de um confronto. Ou esquecendo que o jornalista, embora não possa negar o impacto emocional de muitas situações sobre que é chamado a reportar, não deve deixar-se submergir por essa onda de sentimentos e perder o sentido de equilíbrio, de proporção, de razão. Em tudo há conta, peso e medida.

Claro que a situação presente não é da mesma natureza. Se assim se pode falar, o consenso nacional sobre a necessidade de combatermos por todos os meios a epidemia com que estamos confrontados é bastante mais evidente do que o regozijo por uma vitória no futebol, que a muitos portugueses pouco ou nada diz. Ainda assim, podemos perguntar-nos se esse consenso nos permite esquecer certos princípios e normas que ajudaram a construir a identidade do jornalismo e a desenhar o seu contributo específico para o desenvolvimento de uma cidadania crítica e adulta – um contributo específico tanto mais necessário nos dias de hoje quando mais se multiplicam (ver redes sociais…) iniciativas de aparência jornalística mas que se especializam em propaganda enviesada, desinformação emotiva ou manipulação despudorada. Todo o contrário do que deve ser o jornalismo.

Pergunto-me se os pivots de alguns jornais televisivos – sobretudo dos jornais que duram quase duas horas e, para além de jornais “de notícias”, estão transformados, por vezes, em autênticos programas “de variedades” – não correm o risco de quase se esquecer que são jornalistas, pois o seu trabalho naqueles contextos parece situar-se a meio caminho entre os animadores dos programas de entretenimento das manhãs (que também têm algumas componentes de informação) e os apresentadores dos programas de debate típicos dos late night shows americanos (que juntam a componente informativa ao enfoque do humor). A verdade é que Jorge Gabriel, Manuel Luis Goucha, Cristina Ferreira ou Fátima Lopes não são jornalistas; nem jornalistas são Jon Stewart, Steve Colbert, John Oliver ou Trevor Noah. Todos eles falam com pleno à-vontade dos assuntos que lhes apetecem, dando opiniões pessoais, criticando, louvando, ironizando, barafustando, sendo parciais, promovendo quem entendem, rindo, chorando, comovendo-nos, provocando-nos…

Mas é isto que importa relevar: nem eles são profissionalmente jornalistas, nem os seus programas são programas de informação, no sentido jornalístico (o que não quer dizer, sobretudo no caso dos late night shows americanos, que não tenham um papel muito semelhante, quando não superior, ao do jornalismo mainstream na construção de uma opinião pública crítica e bem informada…). Um jornal televisivo é outra coisa. É, desde logo, um jornal. E continua a sê-lo, mesmo quando, em alguns canais, fica por vezes atafulhado em fait-divers, reportagens de assuntos life style, momentos de humor ou entrevistas light. Sendo um produto-serviço jornalístico, e sendo conduzido por jornalistas, é legítimo esperar que siga as regras, princípios e padrões essenciais do jornalismo, mesmo quando as situações são emocionalmente fortes.

E a tentação de começar a misturar sentimentos e impressões pessoais pelo meio da informação, trocando o espaço da notícia pelo da opinião, ou do desabafo, ou da “causa”, pode abrir um caminho que facilmente conduz a exageros e que se vai replicando por aqui e por além, quase sem noção.

Um jornalista pode ser um agente de mudança social, pode contribuir para melhorar muitas coisas. Mas a maneira de contribuir para a mudança não é proferindo grandes discursos; é fazendo grandes reportagens, é descobrindo e desenvolvendo grandes notícias, é investigando o que está escondido, é entrevistando quem tem coisas a dizer, é analisando e dando sentido ao que acontece à nossa volta. A melhor maneira de contribuir para a mudança é fazendo bem o seu trabalho, o seu trabalho específico, aquele que ninguém consegue fazer na sua vez. Quanto a discursos, há muito quem os faça.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.