Ainda não tinham 18 anos quando chegaram à Europa. Fugiram da guerra do Afeganistão, da escravatura e do trabalho infantil. Vinham à procura de um recomeço, como todos os refugiados que são obrigados a abandonar os seus países.

​Chegaram a Portugal em março de 2017. Vinham da Grécia, onde estiveram pelo menos um ano a viver entre lares de acolhimento e campos de refugiados.

O Afeganistão não faz parte da lista de países abrangidos pelo programa de recolocação europeu. Apesar de estar em guerra há quase 40 anos, os governantes da Europa entendem que não existe um conflito e que é um país seguro.

O Afeganistão, a seguir à Síria, é o país com mais refugiados em todo o mundo. São mais de 2,6 milhões de afegãos que fugiram da guerra e da insegurança do país. Só nos primeiros seis meses de 2018, morreram 1.600 pessoas por causa do conflito afegão.

A decisão da Europa, de excluir os afegãos do programa de recolocação, faz com que a Grécia seja o início e o fim para estes refugiados. Não podem viver o sonho europeu. Ou ficam na Grécia ou são deportados.

Os menores não acompanhados, e por serem menores, não podem ser deportados. Mas o sistema grego está sobrelotado, não tem capacidade para absorver todas as crianças que chegam sozinhas à Europa. Apenas mil estão em lares de acolhimento. Estima-se que cerca de 2.500 crianças não acompanhadas vagueiam sozinhas pelas ruas de Atenas, estão em campos de refugiados ou em campos de detenção, à espera de um sinal de solidariedade.

Portugal abriu a porta a cinco destas 3.500 crianças. Quis recebê-las e dar-lhes a oportunidade de recomeçar. De outra forma nunca conseguiriam viver num país europeu.

Era um projeto-piloto de cinco e o objetivo seria virem mais 95 menores não acompanhados. Portugal foi o primeiro e único país da Europa a receber menores não acompanhados afegãos. Ninguém os queria e Portugal deu-lhes a mão.

Mas dar a mão não é suficiente. Houve muitas falhas no processo de integração de Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib. O que poderia correr mal correu.

Foad, dos cinco, é o mais sofrido.

​Os jovens viveram juntos no mesmo apartamento durante sete meses. Jan e Khan são irmãos, Madhí é órfão de pai e mãe, Najib perdeu o pai, que era militar, na guerra do Afeganistão, e Foad fugiu dos pais e do trabalho infantil. No Afeganistão nunca fora à escola, não sabe ler nem escrever.

Em outubro de 2017, Foad é separado do grupo. Levam-no para um lugar distante de tudo o que conhecia, geográfica e culturalmente.

A vinda destes cinco menores não acompanhados foi preparada durante mais de um ano pela CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade Social – promotora da iniciativa. Houve duas visitas de diagnóstico à Grécia. A primeira para conhecer a realidade dos menores não acompanhados. E “uma segunda, integrada numa visita feita com o Governo português, no sentido de tentar encontrar respostas, que Portugal pudesse dar, de apoio, cooperação e solidariedade com a Grécia”, como conta Ana Rodrigues da CNIS.

Entre Portugal e a Grécia houve um “entendimento pioneiro bilateral que não estava a ser feito na União Europeia fora do programa de recolocação, que não abrangia por exemplo o problema dos afegãos”, diz Ana Rodrigues. Portugal, através da CNIS, e a Grécia, através da MetaDrasi, Organização Não Governamental grega especializada no acolhimento de menores não acompanhados, firmaram um acordo que haveria de possibilitar a vinda de cinco jovens afegãos num projeto-piloto.

A ideia partiu da CNIS, numa parceria com a MetaDrasi, duas organizações da sociedade civil. Mas em Portugal foi também movido um enorme conjunto de instituições estatais para a integração destes cinco jovens na sociedade portuguesa. A CNIS, instituição que iria coordenar o processo de integração, mal Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib aterram em Portugal, foi afastada.

A CNIS, instituição que conhecia a fundo cada um dos perfis e necessidades dos jovens, queixa-se de ter sido posta de lado.

O pivot de todo o processo foi a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. E o Tribunal de Família e Menores de Setúbal era, e ainda é, o supervisor máximo dos menores.

Pedro Calado, Alto Comissário para as Migrações e Catarina Marcelino, à época Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, não falharam à receção de Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib no Aeroporto de Lisboa.

Os cinco menores foram entregues à Fundação COI, no Pinhal Novo. A tutela foi atribuída, pelo Tribunal de Setúbal, a Carlos Taleço, presidente do Conselho de Administração.

A justificação da escolha da Fundação COI recai apenas e só numa razão.

À entrada em Portugal, um dos rapazes, Jan, já era maior de idade e não podia ser separado do irmão mais novo.

Por haver um jovem maior de idade, a instituição teria de ter a valência de apartamentos de autonomia.

Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib foram colocados num apartamento de autonomia da Fundação COI no Montijo. Viviam os cinco, sempre acompanhados por uma auxiliar. Estas funcionárias da Fundação COI trabalhavam sob coordenação de um psicólogo, o Dr. Fábio.

No tempo em que estiveram na Fundação COI, o grupo partiu-se em dois. O desentendimento entre Foad e Jan ditou o afastamento.

Foad foi automaticamente retirado da Fundação COI por ordem do Tribunal de Família e Menores de Setúbal. Foi colocado num lar em Arronches, uma vila alentejana a 220 quilómetros de Lisboa. E desde essa altura, outubro de 2017, que não se cruza com os outros quatro rapazes que vieram com ele para Portugal.

Foad passou um ano em Arronches.

Conheceu Susana Bastos ainda no tempo da Fundação COI. Era a professora de Português. Trabalhavam 11 horas por semana. “Íamos para a biblioteca, tentava ensinar-lhe o Português básico. Ele teve sempre muita vontade de aprender, comecei por falar com ele algumas palavras em Português, palavras que eram importantes para ele”, recorda Susana.

Estiveram juntos dois meses, setembro e outubro de 2017. “No final de outubro, o Foad deixou de ir à escola. Eu não percebia porquê, porque ele realmente era um miúdo que tinha vontade de aprender. Fui tentar perceber o que se passava à direção e a direção falou que o Foad por iniciativa da Fundação COI iria sair da escola.”

Só depois Susana viria a saber para onde Foad tinha sido levado.

Foi colocado no Lar PraCachopos, um lar de infância e juventude com regime de internato.

Neste lar viviam crianças com problemas do foro psíquico e comportamental. E não era um lar especializado no acolhimento de refugiados em fase de integração.

Mas foi o Tribunal de Família e Menores de Setúbal que decretou a ida para o Alentejo do jovem afegão.

Foad não se adaptou ao ritmo de Arronches. Descrevia o tempo que lá viveu como “prisão”.

O pedido de entrevista para esta reportagem, feito à instituição de Arronches, foi recusado.

Maria João Valentim, diretora do Lar PraCachopos, apenas aceitou responder por escrito. Confrontamo-la com depoimentos feitos sobre o tempo que Foad passou em Arronches.

Foad foi autorizado a sair de Arronches no final de agosto de 2018.

Por ordem do Tribunal de Setúbal, Foad fez um exame médico ao fémur.

Quando chegou a Portugal, em março de 2017, o SEF determinou que Foad tinha 16 anos. Já depois de estar em Arronches, o tribunal entendeu avaliar a idade real do jovem.

As suspeitas confirmaram-se e jovem afegão já era maior de idade. Os resultados do exame médico levaram o tribunal a decretar que Foad já tinha mais de 18 anos.

O próprio tribunal, em resposta ao pedido de consulta do processo do Foad, comunica-nos que este já atingiu a maioridade.

 

A partir daí Foad poderia decidir o que fazer: ficar em Arronches, no Lar PraCachopos, ou regressar a Lisboa.

Quando veio para Lisboa, o tribunal atribuiu a tutela de Foad à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Os técnicos tinham pela frente o desafio de integrá-lo na sociedade.

Durante um ano viveu isolado do dia a dia normal e apesar de, em Arronches, Foad ter tido equivalência ao 9º ano de escolaridade, chegou a Lisboa sem saber ler nem escrever Português.

​Só ao fim de quase um mês a viver em Lisboa, Foad começou a ter aulas de Português.

A Santa Casa conseguiu que ele tivesse aulas no Conselho Português para os Refugiados, com refugiados em situação semelhante, e ainda no Centro de Apoio Familiar da própria Santa Casa com um professor voluntário.

Foad queria muito aprender a ler e a escrever Português. Queria muito ter uma escola para estudar. Queria muito conseguir um emprego. Queria muito ser independente.

“Ele é uma pessoa muito inconstante, ora está bem, ora não está bem. Tudo lhe faz muita confusão. Se estava fechado numa casa fazia-lhe confusão, agora que está a viver num sítio onde há muito movimento, também lhe faz confusão. Tudo lhe faz confusão”, caracteriza Susana Bastos.

Foad desistiu desta reportagem no dia em que recebeu o cartão de residência, 13 de novembro de 2018. Mais de um ano e meio depois de ter chegado a Portugal.

Portugal convidou estes cinco jovens para recomeçarem a vida deles aqui. Mas nenhum conseguiu ter um percurso sem desvios.

Pedro Calado, Alto Comissário para as Migrações, chegou a falar da integração dos cinco afegãos durante uma conferência sobre acolhimento de migrantes. À data dessa conferência, 30 de maio de 2018, Foad já tinha sido levado para Arronches e os outros quatro jovens já não estavam à guarda da Fundação COI.

Também no Relatório de Avaliação da Política Portuguesa de Acolhimento de Pessoas Refugiadas, de dezembro de 2017, o ACM avalia a integração dos cinco.

No final de 2017, a CNIS já teria sido afastada, Foad já estaria sozinho em Arronches e Jan, Khan, Madhí e Najib já teriam sido retirados, pela Segurança Social, da Fundação COI.

Mesmo assim, o ACM entende que os cinco menores estrangeiros não acompanhados se encontravam “devidamente integrados na sociedade portuguesa”.

Pedro Calado, quando contactado, não quis falar sobre o assunto, alegando agora a salvaguarda dos menores. Remeteu-nos para o tribunal.

Não sabendo ele que, do Tribunal de Família e Menores de Setúbal, já tínhamos dois pedidos de consulta de processo recusados.

No despacho do tribunal, é sugerido o contacto com o Ministério da Administração Interna.

Seguimos o caminho indicado. A tutela de Eduardo Cabrita encaminhou-nos para a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. Rosa Monteiro, atual Secretária de Estado, não tinha declarações a fazer sobre este caso.

O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras também seguiu o caminho do silêncio e não se pronunciou sobre o tema.

Todas as instituições envolvidas no acolhimento destes cinco menores estrangeiros não acompanhados fecharam-nos a porta. Silenciaram o tema.

Apenas o Instituto da Segurança Social aceitou falar.

O sistema “está em construção”, hoje ainda não está no nível que estas entidades pretendem. Mas Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib já vivem em Portugal há mais de dois anos. Como estaria no dia em que estes cinco menores aterraram em Portugal?

Jan, Khan, Madhí e Najib continuam a viver juntos, num apartamento da Segurança Social na Área Metropolitana de Lisboa. Foram retirados da Fundação COI pouco tempo depois de Foad sair.

Os irmãos Jan e Khan continuam inseparáveis e com a esperança de trazer a mãe e os irmãos, que ficaram no Paquistão, para junto deles. Najib e Madhí estão a tirar um curso profissional, mas pouco falam Português.

Depois da saída da Fundação COI passaram a viver sozinhos, sem uma auxiliar 24 horas por dia. Estão entregues à sua própria sorte.

Durante meses tentámos a aproximação a Jan, Khan, Madhí e Najib. Quando finalmente conquistámos a confiança deles, voltaram a afastar-se.

Ficaram com medo e recuaram de imediato. Não sabemos a razão, apenas que estará relacionada com a tomada de posição de professores do Instituto de Emprego e Formação Profissional.

Os jovens maiores de idade podiam decidir sozinhos o que queriam: fazer ou não a reportagem.

O próprio tribunal, em resposta ao pedido de consulta do processo, confirma que, se o jovem “é maior de idade, caber-lhe-á, livremente, decidir se pretende ou não colaborar com o trabalho”.

Mas não foi isso que aconteceu e estes quatro jovens também desistiram da reportagem.

Ana Rodrigues continua a acreditar nesta causa e não desiste de salvar mais menores não acompanhados que cheguem à Europa.

A CNIS mudou de parceiro. Junta-se agora à Associação de Apoio à Criança de Guimarães. Têm um projeto pensado e uma futura casa para 16 menores não acompanhados idealizada. Estão a trabalhar para ter um acolhimento especializado e à medida das expetativas de quem vem.

Só o tempo ditará o sucesso ou não deste novo projeto.

Foad, Jan, Khan, Madhí e Najib vão continuando por aí.

Portugal falhou com cada um destes cinco jovens afegãos. Ficaram esquecidos. À própria sorte. Como sempre foi a viagem da vida deles.

Os bastidores de “Os cinco escolhidos, os cinco esquecidos”: este trabalho é a expressão da essência do REC, lugar de interligação entre o mundo académico e o mundo profissional.