Ciganos de corpo inteiro

Duas histórias de superação e uma promessa

Maria Rodrigues e Rita Murtinho (Universidade Nova de Lisboa)

Estima-se que vivam em Portugal cerca de cinquenta mil ciganos. A ausência de recolha de dados étnicos dificulta que se conheça a realidade de cerca de 5% da população portuguesa. O Estudo Nacional das Comunidades Ciganas de 2014 mostra que cerca de 27,5% dos ciganos ainda vive em barracas. Já o 2º Inquérito sobre Minorias e Discriminação na União Europeia de 2016 revelou que 74% dos ciganos, em Portugal, apresenta “grande dificuldade de subsistência”. Em maio de 2020, um deputado português de extrema-direita propôs um confinamento específico para uma comunidade que é, há cinco séculos, empurrada para as margens da sociedade.

A história de segregação da comunidade cigana começa hoje a conhecer novos contornos. Catarina Marcelino, antropóloga, que investiga a comunidade cigana, e antiga secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, não tem dúvidas de que “a educação é a chave”: “Precisamos disso [da educação] para a própria comunidade poder integrar-se e incluir-se”. A mudança tem rostos e nomes.

O Perfil Escolar das Comunidades Ciganas, publicado pela Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEC), relativo ao ano de 2018/2019, revela uma diminuição positiva da taxa de abandono escolar de 8,1% para 5,9%. No entanto, a redução do número de alunos ciganos matriculados consoante avançamos no grau de ensino é substancial. Se no 1º ciclo do ensino básico estão matriculados 44,3% das crianças ciganas, no Ensino Secundário esta percentagem baixa para 2,6%.

O Perfil Escolar das Comunidades Ciganas de 2018/2019 é revelador das diferenças de género entre os alunos da comunidade. Enquanto apenas 4,8% dos rapazes abandona precocemente o ensino escolar, quando falamos das raparigas, este número sobe para 7,1%.

Estes números não surpreendem Sónia Matos, mulher cigana e mediadora sociocultural, que, com apenas 10 anos, também foi retirada da escola para passar a frequentar aquilo a que chama de “universidade da comunidade cigana”. “Preparamo-nos para sermos mulheres, esposas e donas de casa. Este é o papel esperado da mulher cigana”, explica Sónia Matos.

“A retirada das meninas ciganas da escola é tradicionalmente considerado um ato necessário de preservação da identidade cigana”, escreve Nora Kiss no programa do Opré Chavalé. A anterior presidente da REDE de Jovens para a Igualdade explica que “as mulheres que são expostas a contacto com homens não ciganos perdem o seu valor”. Deste modo, existe uma pressão muito grande, por parte da família e da própria comunidade, “em retirar as meninas da escola no início da adolescência”.

Nora Kiss esclarece que “as mulheres são educadas para verem a escola como pouco importante”. Mesmo assim, Vanessa Lopes desafiou os limites impostos pela cultura cigana ao retomar os estudos com 20 anos. Hoje, seis anos depois, Vanessa já é licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa.

A Associação das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP) foi criada em 2000 por um grupo de cinco mulheres ciganas com um sonho comum: promover o desenvolvimento das mulheres e crianças ciganas em Portugal. “Um sonho que nasce de uma necessidade”, como afirma Sónia Matos, também fundadora e membro da direção.

A mediadora sociocultural do Seixal relembra a semelhante luta pela emancipação feminina em 1974. “Na altura da ditadura, as mulheres não tinham qualquer poder”, recorda Sónia Matos. Também este caminho partiu de uma necessidade: “Como os homens estavam todos na guerra, as mulheres foram obrigadas a sair e a trabalhar para dar de comer aos filhos. É o mesmo que se passa agora: a comunidade está a sofrer uma mudança”, esclarece a fundadora da AMUCIP.

Sónia Matos não hesita em apontar o Rendimento Social de Inserção como o grande responsável por esta transformação. “O RSI obrigou as instituições a desenhar um plano para integrar a comunidade”, explica. Mas só agora, vinte e um ano depois, é que Sónia Matos assiste às conquistas da AMUCIP, “porque a mudança de mentalidades leva tempo”.

Vanessa Lopes tem a coragem de fintar o destino.

Vanessa Lopes foi uma das 17 mulheres beneficiárias do Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE), no ano letivo 2020/2021. Criado em 2015 pela Associação Letras Nómadas, o Programa Escolhas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens, o OPRE oferece bolsas de estudo a alunos ciganos, para incentivar a entrada no Ensino Superior. Através da educação, o OPRE ambiciona esbater as barreiras que isolam a comunidade cigana.

O físico Piménio e a recém licenciada Vanessa são dois exemplos de superação. Apesar de o Perfil Escolar das Comunidades Ciganas revelar uma “evolução muito positiva” na inclusão da comunidade na escola, como constatou o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, ao jornal Público, o levantamento feito pela Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência confirma ainda uma taxa de abandono escolar de 5,9%.