Nem tudo o que vem à rede é lixo…

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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Nos nossos dias, cada vez mais pessoas optam por comunicar e por se informar através de novos meios, novos suportes, novas linguagens. Indispensáveis para muitos, desprezíveis para não poucos, assim-assim para alguns, as redes sociais (“social media”, como lhes chamam os anglófonos…) são já uma presença incontornável na nossa paisagem mediática. E merecem que tentemos compreendê-las.

Talvez seja tempo de começarmos a olhar para as redes sociais com perspetivas mais latas e mais adequadas ao tempo que (e ao modo como) vivemos. Elas continuam a ser encaradas, sobretudo em setores intelectuais, científicos e académicos, como a fonte de todos os males informativos que nos ameaçam, com as célebres “fake news” à cabeça. Continua a haver muito quem fale delas, em tom quase enojado, como uma espécie de “canos de esgoto” por onde circula toda a porcaria, o domínio do insulto gratuito e anónimo, o lugar da mais obscena impunidade, enfim, o diabo na terra, lugar de vício e de brincadeira, apenas frequentado por gente que não sabe nem quer ler mais nada e que gosta de chafurdar no lixo, ao mesmo tempo que se diverte a “postar” imagens de gatinhos ou gatinhas.

Exagero? Talvez… e talvez não. É ouvir alguns dos mais encartados comentadores dos nossos média e o que eles dizem dessa “praga” que são as redes sociais. E diziam-no há 15 anos, e diziam-no há 10 anos, e dizem-no agora, sem tirar nem pôr. Aparentemente nada mudou. E especificamente quanto à informação pública sobre a atualidade, quem pensa assim não tem dúvidas: informação a sério está nos jornais, nas rádios, nas televisões, em versões offline ou online, e mais nada. Informação a sério é nos meios de comunicação tradicionais, nos chamados “legacy media”, nas marcas e nos títulos de sempre. Informação nas redes sociais? Nem pensar, aí é só entretenimento e javardice irresponsável…

Uma presença quotidiana

E, no entanto, há, hoje em dia, milhões e milhões de pessoas que frequentam assiduamente as redes sociais também para se informarem sobre a atualidade – e não (ou não só) para difundirem fotos de gatinhos e gatinhas. Muitas dessas pessoas usam-nas como um meio complementar dos meios informativos tradicionais; outras, sobretudo entre os mais jovens, usam-nas como um meio exclusivo, o único que frequentam para tudo o que seja comunicação, incluindo para se informarem sobre o que se passa no país e no mundo. Estas pessoas deixaram há muito de ler jornais ou revistas (e é duvidoso que voltem a elas), ouvem alguma música na rádio (cada vez menos), espreitam uns programazitos na televisão (cada vez menos), mas circulam com a maior familiaridade por caminhos de comunicação chamados Instagram, Facebook, Twitter, Youtube, TikTok… Todos os dias, muitas horas por dia. E circulam por lá não só para ver e ouvir, mas também para emitir e difundir. Não são meros utilizadores. Nem simples produtores. São “produsers”, jogando em tabuleiros que não têm sentido único, muito menos vertical, antes se movem em todas as direções horizontais. Por tudo isto, talvez seja mesmo tempo de começarmos a olhar para estas coisas com mais atenção – e até com mais respeito. A preocupação maior, julgo eu, deve ser compreender o que aqui se passa, e não apenas julgar. Porque o que aqui se passa é muito mais complicado do que parecem fazer crer as opiniões críticas de quem só vê nas redes sociais os tais “canos de esgoto”.

É claro que há muito esgoto naqueles canos. Se há! E tentar melhorar as regras de convivência na rede é um objetivo que não devemos menosprezar. Mas, apesar de tudo, também por ali se pode encontrar muita coisa boa, mostrando-nos como os novos suportes comunicativos das sociedades da era digital (sociedades em rede, não é?…) vieram para ficar e vão complementando, ou até substituindo – e muitas vezes com vantagem – os velhos suportes.

Os média tradicionais já começaram a perceber isto. Em todas as redações há, hoje, equipas atentas ao que se conversa e se mostra nas redes, retirando daí sugestões de agenda que possam ir ao encontro dos interesses reais do público. E todos os meios de comunicação também já aproveitam intensamente as redes para divulgar as suas notícias e trabalhos, desenvolvendo um “marketing” bastante frutuoso, pelo que se sabe. São os meios a tentar chegar aos sítios onde estão as pessoas, e não, como no passado, a esperar que sejam as pessoas a vir ter com eles…

Dar voz a todos nós

E nós, os utilizadores individuais, que vantagens retiramos das redes sociais?

Muitas, sem dúvida. Mais ou menos, conforme queiramos alargar ou restringir o leque das pessoas / grupos / organizações / instituições que seguimos e que permitimos que nos sigam. Mesmo com um leque mediano, não é difícil, ao fim de uns minutos de navegação, ficarmos a saber muito do que se passa em termos noticiosos. E a vantagem é que, seguindo fontes diversas, estamos a ler vários jornais (e não apenas um), a comparar diferentes versões, a apreciar múltiplas opiniões, a alargar os nossos horizontes.

E esta é porventura uma das maiores riquezas da informação através das redes sociais: sabemos das notícias, sim, mas sabemos também o que sobre elas pensam muitas pessoas diferentes (tantas mais quantas mais quisermos seguir), colocando-nos no meio de uma conversação que acrescenta ao nosso conhecimento e nos ajuda a irmos alicerçando as nossas próprias opiniões. A opinião dos outros também é informação. Gostamos de ler colunas de opinião, gostamos de ouvir comentadores, gostamos de saber o que pensam estes ou aquelas sobre um determinado assunto, e tudo isso contribui para que nós próprios entendamos melhor o que se passa, por que se passa, que causas tem e que consequências podem dali advir. Tudo isso contribui para darmos sentido ao que nos rodeia. E se há coisa que podemos encontrar nas redes sociais é comentário, opinião, discussão, polémica, conversa. Às vezes até demais. Às vezes com excessos. Às vezes com ofensas. Às vezes sem jeito e sem graça. Mas muitas outras vezes com interesse, com gosto, com gozo, com perspicácia, com diversidade, com novidade… Se nas redes sociais cabe toda a gente e cabem todas as vozes (ao contrário do que sucede nos média tradicionais, muito mais restritos em termos de quem pode ali falar ou escrever), há uma enorme multiplicidade de vozes, de perspetivas, de assuntos, que nunca antes tinha sido possível. Minorias, nichos, correntes marginais, de tudo um pouco.  Informação, muita informação – feita de factos, de eventos, de novidades, mas também de comentários, de análises, de opiniões.

Além disso, “last but not least”, temos esse privilégio valiosíssimo que é podermos nós próprios participar também daquela conversação. Também nós podemos entrar na roda, dizer o que pensamos, contrariar o que diz o outro, propor novas leituras, acrescentar ao coletivo. Podemos não estar apenas passivamente a ler e a ver. Podemos reencaminhar. Podemos partilhar. Podemos aplaudir, se calhar só com um “gosto”. Podemos criticar. Podemos dizer de nossa justiça. Podemos participar, mais ou menos ativamente. Mas participar. Ter voz.

Quando restringimos os nossos contactos nas redes a um pequeno conjunto de amigos, ficamos naturalmente mais limitados quanto à diversidade do que nos chega. Mesmo assim, a lógica das redes alarga sempre a perspetiva, pois aos nossos amigos juntam-se os amigos dos nossos amigos, e por aí adiante… Entretanto, podemos ir mais longe na multiplicação de círculos de pessoas com quem queremos estabelecer algum contacto, sejam amigos, sejam simples conhecidos, sejam pessoas que gostamos de “seguir” porque nos acrescentam qualquer coisa. É essa a lógica do funcionamento em rede(s), é essa a sua grande vantagem, num caminho de multiplicação que vai mais perto ou mais longe conforme nós queiramos. Mais uma vez, somos nós que queremos, somos nós que decidimos, não é ninguém a decidir por nós. Tudo bem diferente do que se passa na esfera dos média tradicionais…

Os caminhos da informação (e do jornalismo) estão mais largos, mais diversos, mais complexos – mais exigentes também. As coisas mudaram, muito e depressa, e continuam a mudar. Tentar perceber essas mudanças e retirar delas todo o bom que trazem, denunciando o mau que por ali também anda, é um desafio estimulante. Porque, queiramos ou não, em matéria de comunicação e informação no espaço público nada será como dantes.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.