Jornalistas que vão à guerra

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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A regra é simples, mas nem toda a gente parece tê-la percebido: quando um jornalista está a reportar sobre a guerra, o assunto importante não é o jornalista – é a guerra.

No imaginário de qualquer (candidato a) jornalista, há o incontornável desejo de experimentar, ao menos uma vez na vida, esse enorme desafio que é ser repórter de guerra. Infelizmente, nos tempos que correm, temos quase sempre uma guerra de qualquer espécie, mais perto ou mais longe, a acenar-nos essa oportunidade. Pode ser no Iémen ou no Afeganistão, na Síria ou em Myanmar, na Líbia ou no Líbano, na Cachemira ou no Iraque, na Eritreia ou no Sudão, sei lá… tantas! E hoje em dia pode ser também na… Europa. Aqui ao lado. Muito, muito pertinho. E quase a tocar-nos na pele também.

Por força da circunstância, nas últimas semanas pudemos acompanhar dezenas de jornalistas portugueses que foram fazer reportagem de guerra. Uns já muito experimentados na coisa, outros assim-assim, alguns perfeitamente estreantes. Mas para todos, arrisco dizer, sempre um grande desafio: muita adrenalina a bombar, algum natural nervosismo, ansiedade, vontade de fazer uma coisa com que porventura já se tinha sonhado, mas nunca tinha sido possível. Sim, que há em volta disto também um certo, digamos, romantismo, uma carga meio mítica que põe o jornalista no miolo dos acontecimentos, capacete na cabeça e gravador ou câmara nas mãos, rodeado de bombas e explosões, ouvindo tiros, vendo sangue, sentindo a tragédia em cada metro de terreno e avançando, intrépido, à procura da notícia em tempo real. E quantas vezes em direto! Já vimos muito disto em grandes filmes de ação, agora vamos vendo diariamente na televisão que ligamos à hora das notícias. E vamos tendo sentimentos múltiplos em relação ao que vemos, claro.

O essencial e o acessório

Fazer reportagem de guerra é tudo menos fácil, por diversas razões. E implica que os jornalistas estejam bem cientes da situação em que se metem, para que não se gerem confusões ou equívocos.

Um desses equívocos pode enunciar-se singelamente assim: quando um jornalista está a reportar sobre a guerra, o assunto importante não é o jornalista – é a guerra. Se ele ou ela passam uns largos minutos a dizer-nos que não conseguem dizer-nos nada sobre a guerra, acabando por nos contar apenas as mil peripécias por que vão passando, o que comem ou não comem, onde dormem ou não dormem, com quem vão ou com quem vêm, aquilo acaba por ser uma conversa talvez curiosa, mas de informação relevante e atual não se espreme dali quase nada… Para o jornalista, aquilo está decerto a ser uma aventura fantástica e fora do vulgar, sendo natural que se sinta excitadíssimo com todo o cenário à volta, que queira aproveitar para tirar umas “selfies” e que morra de vontade de nos contar o que se passa com ele, tim tim por tim tim. Mas para nós, que queremos saber da guerra, de como as coisas estão a evoluir, do que se passou e pode vir a passar-se, pouco nos importa saber se o jornalista fez a barba ou se a repórter apanhou uma boleia num trator. Reconheça-se que há alguma curiosidade em saber o que é estar ali, naquela situação invulgar, em plena guerra. Afinal, os jornalistas também são pessoas e há uma componente muito humana que se cruza com o seu labor profissional. Mas essa vertente deve ser acessória e lateral, deve apenas complementar o trabalho informativo; não deve sobrepor-se a ele e muito menos substituí-lo.  Há casos em que jornalistas a cobrir eventos dramáticos (uma guerra, uma catástrofe natural…) decidem escrever umas crónicas que funcionam como uma espécie de diário pessoal daquilo por que vão passando e daquilo que vão sentindo. E publicam-nas, mas não as misturando com o trabalho de reportagem sobre o assunto que lá os levou e do qual todos ansiamos por saber novidades. O apontamento pessoal é isso mesmo, um apontamento pessoal, escrito à margem e não no lugar central da reportagem. Um complemento, apenas um complemento.

Um segundo equívoco contra o qual importa estarmos precavidos tem a ver com a ilusão de que, ao cobrir uma guerra “in loco”, estamos a fazer reportagem objetiva e independente, ouvindo todas as partes em confronto. De um modo geral, ao cobrir uma guerra, os jornalistas estão a cobrir apenas um dos lados. Não quer dizer que isso não se faça, mas quer dizer que convém nunca nos esquecermos disso, até para pôr sempre as coisas “em perspetiva”, como gostam de dizer os especialistas. Seria ótimo que o jornal de que sou leitor ou a estação de televisão da minha preferência enviassem sempre dois profissionais para um terreno, um para cobrir um dos lados, outro para cobrir o outro. E assim saberíamos, ao mesmo tempo, o que acontecia num e noutro, e o que contavam um e outro, e a verdade que diziam um e outro, e as mentiras que faziam passar um e outro… Não, nunca sucede. Há dias, soube-se que há um jornalista chinês que está a acompanhar a guerra movida pela Rússia à Ucrânia do lado das tropas russas, Lu Yuguang de seu nome. Mas, tanto quanto sei, é caso único. Todos os jornalistas estrangeiros destacados para o conflito, entre eles os portugueses, estão do lado da Ucrânia – seja no centro dos acontecimentos, seja nas fronteiras por onde têm saído os refugiados. Esta situação implica sempre redobrados cuidados na avaliação das informações e interpretações que são transmitidas aos jornalistas, pois estes muito dificilmente terão a oportunidade de seguir aquela “regra de outro” de “ouvir sempre a outra parte”. Até porque, do lado “de cá”, tenderão sempre a dizer-nos que é pura propaganda aquilo que nos chega do lado “de lá”… e vice-versa…

(Em tempo: o facto de se falar de “dois lados” na guerra não significa que eles estejam no mesmo plano, que sejam simétricos. Longe disso. Neste conflito, um dos lados é invasor e o outro é invadido; um foi atacado, outro está a defender-se; um é o agressor, outro o agredido. Ainda assim, de um ponto de vista informativo, há muitas situações em que o conhecimento mais próximo do que se passa em ambos os lados nos ajudaria a saber melhor como estão as coisas de facto e, desse modo, a conseguir lidar melhor com as tentativas de desinformação que sempre se multiplicam nestes contextos).

Muita história para contar

A dificuldade aqui enunciada prende-se com um terceiro equívoco, que é o de presumirmos que por termos uns enviados especiais ao teatro de guerra conseguimos, de facto, assistir a tudo o que importa e estamos, portanto, em condições de noticiar objetivamente o que acontece. Ou seja: a ilusão de que falamos do que vimos com os nossos próprios olhos. Não. Os exemplos que diariamente nos passam pelas televisões, pelas rádios, pelos jornais, mostram como isso está muito longe da realidade. Os repórteres veem-se muitas vezes impossibilitados de chegar sequer perto dos locais onde a ação ocorre, seja porque é difícil movimentarem-se no terreno, seja por óbvias razões de segurança. Não raro, eles estão a quilómetros de distância, ficando totalmente dependentes do que lhes seja contado por quem viu as coisas mais de perto – ou por quem quer transmitir uma determinada versão (o que sucede frequentemente do lado das estruturas militares). Houve ou não houve um bombardeamento ali?… E de que lado veio?… O edifício atingido era mesmo civil ou tinha tropas lá dentro?… Os soldados vistos a disparar eram ucranianos ou russos?…  Perguntas como estas multiplicam-se a cada momento e as respostas nem sempre são evidentes. O que torna o trabalho do jornalista muito difícil, muito arriscado, muito frágil. O lado “herói” do repórter de guerra precisa de ser matizado com estas circunstâncias “domésticas” da vida real de um profissional que, no terreno, tenta pesquisar, produzir e disseminar informação de qualidade…

E tudo isto se complica ainda mais quando temos a consciência de que algumas das armas mais poderosas de uma qualquer guerra são, precisamente, as armas da informação e da comunicação. O que também faz dos jornalistas (e dos média em geral) protagonistas involuntários do conflito. Não falta quem queira usá-los, instrumentalizá-los, manipulá-los, convencê-los a dizer isto e não aquilo, a mostrar este ângulo e não aquele, a visitar este lugar e não outro, a dar crédito a esta parte e não àquela, quando é certo que, nas mais das vezes, eles não têm possibilidade quase nenhuma de verificar, de confirmar, de recolher outros dados ou opiniões.

Contadas assim as coisas, quase parece que não vale a pena mandar os jornalistas para o terreno e que tão-pouco merece a pena reportar a partir de lá, pois a probabilidade de estarmos (a ser) enganados é elevada.  Nem tanto ao mar nem tanto à terra… Estas circunstâncias apenas sublinham a necessidade de uma grande prudência e de cuidados redobrados na difusão de informação quando se trabalha em cenários de guerra. Fazer afirmações taxativas a partir de informações não verificadas nem verificáveis é sempre criticável; nestes contextos, os riscos de erro ou desinformação são exponencialmente mais elevados. No entanto, para além da cobertura informativa do andar do conflito, um jornalista encontra no terreno muitos outros motivos de reportagem, muitas “histórias com rosto humano”, que bem justificam a deslocação e o investimento nesses trabalhos. São histórias que também nos dizem muito da guerra e nos ajudam a compreender melhor o que está ali em causa – bem como a tentar contribuir, na nossa medida, para que a tragédia acabe.

A cobertura da guerra na Ucrânia feita por jornalistas portugueses tem-nos dado muitos e bons exemplos do que aqui se diz. Nem todos, claro; também já vimos por lá situações e episódios que não primam propriamente pelo rigor, pelo profissionalismo ou pelo enfoque correto naquilo sobre que importa informar. Mas não podemos perder de vista que se está sempre em terrenos muitíssimo difíceis para qualquer jornalista, terrenos em que a própria vida fica frequentemente em perigo, como infelizmente já vimos com os seis profissionais da informação que, até ao momento, lá foram mortos, além dos mais de 30 que sofreram ferimentos. Todos empenhados em nos informar mais e melhor.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.