Nem tudo o que vem à rede é peixe…

Joaquim Fidalgo, provedor do REC (provedor@reporteresemconstrucao.pt)

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“Como sabes isso? – Li na Net…”
“Onde encontraste esse texto? – Tirei da Net…”
“Preciso de uma fotografia para um trabalho… – Vai à Net…”

Costumo dizer, em tom de brincadeira, que “a Net” é a coisa mais parecida com Deus que por aí temos: a julgar pelo que vemos e ouvimos, ela é omnipresente, é omnisciente, é omnipotente. Como Deus. Tem tudo, sabe tudo. E está aí, à distância de um simples clique num computador ou num telemóvel, aparentemente disponível para tudo o que quisermos retirar dela. Porque ela, “a Net”, pelos vistos não é de ninguém. Pelos vistos, é de todos. Logo, é nossa. É minha.

Mas as coisas não são assim tão simples, pois não?… Desde logo, porque “a Net”, a bem dizer, não existe, não é sujeito com identidade, não produz nada, não escreve, não fotografa nem filma, não investiga, não cria. Tudo o que está “na Net” vem de alguém, de alguém concreto, de uma pessoa, um grupo, um organismo, uma instituição. Tem gente concreta por detrás. O que significa que eu, ao tirar alguma coisa “da Net”, estou a tirar alguma coisa de alguém, mesmo que o nome de autor(a) não esteja lá. Foi alguém que escreveu, que produziu, que criou, que inventou e que difundiu através dessa rede (quase) universal que (quase) todos hoje trazemos nas pontas dos dedos. E se o nome de quem o fez não está lá, pelo menos está um endereço, uma localização, um “site”. É sempre possível identificar aquilo que, de um modo ou de outro, vamos buscar “à Net”.

Há uma dúzia de anos, aconteceu entre nós uma forte polémica envolvendo o então Provedor do Leitor do jornal PÚBLICO (ainda havia Provedor…) e uma jornalista acusada por alguns leitores de ter feito plágio, porque utilizara, sem citar a fonte, pedaços inteiros de um texto da Wikipédia. A jornalista rejeitou a acusação de plágio, sugerindo que usara apenas umas quantas informações de carácter técnico e genérico, mas o Provedor manteve a crítica. E a própria Direção do jornal sentiu necessidade de vir a terreiro, dada a enorme repercussão pública que o assunto ganhara, condenando também o procedimento da jornalista e recordando a necessidade de um cumprimento escrupuloso das regras que obrigam a citar sempre a fonte de onde se retira uma informação. Porque, não indicando qualquer fonte, estamos implícita ou explicitamente a sugerir que se trata de informação original, nossa. Estamos a mentir. Estamos a roubar o que alguém produziu e a tirar proveito disso.

É evidente que a Internet constitui uma ferramenta de incalculável valor para o trabalho jornalístico. Sabem-no melhor que ninguém os profissionais que já trabalhavam antes de haver internet e que passavam horas e horas em arquivos mal organizados ou em bibliotecas sombrias a remexer livros e dossiês, em busca de algumas pistas que pudessem ajudar a orientar uma pesquisa ou a contextualizar um assunto. Sabem-no hoje todos os que praticam jornalismo e que, confrontados com uma proposta de trabalho em matéria que dominam menos, abrem de imediato o Google e começam e percorrer caminhos quase infindáveis de dados, sugestões, novidades, memórias… E então a Wikipédia, é uma tentação enorme, quase não há tema ou nome que não se encontre por lá… E descobre-se por ali muito material valioso, sem dúvida, embora convenha nunca esquecermos que “a Net” tem de tudo, de bom e de mau, de verdadeiro e de falso, exigindo um cuidado particular na confirmação dos dados. Sublinhe-se, entretanto, que o material valioso que lá existe é valioso como ponto de partida – não como ponto de chegada. É material de “background”, hoje em dia tão necessário para dar sentido às notícias que se sucedem a uma velocidade vertiginosa. É material de contexto. É material que abre perspetivas. É material que alerta para aspetos mais esquecidos. Etc. Etc. Etc. Tudo isto podemos agradecer “à Net” – e ainda bem! Que seríamos nós sem ela…

Mas nada disto nos dá o direito de usar, como se fosse nosso, material que é de outrem. Mesmo que não esteja claramente identificado, a verdade é que não é nosso. É de alguém. E alguém que merece a justiça elementar de ver-se citado, mesmo que não esteja em causa (e até pode estar…) algum tipo de pagamento de direitos de autor. A propriedade intelectual não é menos propriedade que qualquer tipo de propriedade material, embora seja normalmente mais fácil de roubar do que estas. Não plagiar obra alheia, seja ela grande ou pequena, técnica ou poética, boa ou fraca, e citar com rigor a fonte das informações que levamos a público, é, afinal, apenas uma questão de respeito. Respeito pelos autores, que merecem manter seu o que é seu. Respeito pelos
leitores / ouvintes / espetadores, que merecem saber onde fomos buscar aquilo que usamos. E respeito por nós próprios, que gostamos de dormir de consciência tranquila.

Joaquim Fidalgo é docente de Jornalismo e de Ética no Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. É doutorado em Ciências da Comunicação. Foi jornalista profissional durante 22 anos, tendo trabalhado no Jornal de Notícias, no Expresso e no PÚBLICO, de cuja equipa fundadora fez parte e onde foi também Provedor do Leitor. É comentador regular da RTP. Nasceu em S. Félix da Marinha, em 1954, e reside em Espinho.