Durante anos, figuras masculinas marcaram o percurso de Sónia, para o bem e para o mal. Só no dia em que conseguiu libertar-se desta dependência é que passou a ser, pela primeira vez, a protagonista da sua própria vida.

Sónia Grilo, 43 anos, é a mais nova de cinco irmãos. “A minha irmã mais velha fazia-me trancinhas e meinhas de renda… Eu sentia-me a bonequinha dela”, lembra Sónia. Alpedrinha, uma pequena freguesia situada no concelho do Fundão, viu-a crescer. Por ser filha de dois talhantes focados em “ganhar o seu dinheiro para pôr comida em casa”, Sónia partilha as memórias com os irmãos. “Os meus pais trabalhavam muito e eu passava mais tempo com os meus irmãos”, justifica a caçula da família Grilo.

Sempre que olha para os chapéus de chocolate à venda nos cafés, recorda os miminhos do pai: “Ele trazia-me um cada vez que saía à noite com os amigos. No dia seguinte dizia «Sónita, tenho uma coisa para ti!» e eu ia a correr ter com ele!”. Um “excelente pai”, como o descreve, mas “nem todos somos todos perfeitos”. Com 10 anos, Sónia rapidamente se apercebe dos problemas que as quatro paredes escondem.

Áudio: “Ó, mãe, custa-me tanto que o pai fale assim contigo”

“Vou crescendo com este conceito errado do que são relacionamentos harmoniosos e famílias estruturadas”, lamenta. A instabilidade dentro de casa não deixa espaço para ouvir o que Sónia tem para dizer e, durante anos, acumula dúvidas que ficam sem resposta.

Um herói improvável

Sónia e a irmã mais velha têm uma diferença de quinze anos e, portanto, Sónia cresce a conviver com o namorado da irmã, ”Pedro” (nome fictício). Apesar de o abraço do pai ser insubstituível, o colo do antigo cunhado era diferente: “Com ele senti-me tão protegida e alimentada a nível de afeto”, desabafa. A proximidade entre os dois era inexplicável, a admiração de Sónia agigantava-se.

Sónia com a irmã mais velha e o antigo cunhado

Pedro tinha acabado de ingressar no exército. Sónia via na farda do seu novo amigo a segurança e estabilidade que poucas vezes encontrou em casa. “Um dia vou para a tropa” dizia Sónia a Pedro. “Não podes, querida, as mulheres não podem ir para a tropa”, respondia-lhe. Mas a persistência de Sónia fê-la seguir os trilhos do antigo cunhado.

Áudio: “O meu estudo, a minha lição de vida”

Foi difícil despedir-se da liberdade do campo, “o poder brincar na lama, ou subir às árvores para ir apanhar os frutos e comê-los ali”, mas as ambições da cidade chamavam por Sónia. Em 1995, Sónia ingressa no exército, onde se mantém durante 10 anos como secretária e socorrista.

Um amigo de olhos azuis

A experiência militar trouxe-lhe rigor e disciplina. Quando vestia a farda, despia-se de emoções. “Emoção e ação às vezes atrapalham-se”, esclarece Sónia. “E, em contexto militar, eu senti muito isso. Quando era emotiva a minha ação ficava completamente alterada”, continua.

Como militar, Sónia sentia-se “inquebrável e imparável”, descreve, “mas era só por fora”. “Que pessoa antipática”, ouvia-se pelos corredores do quartel. “Eu não era nada daquilo. Só que aquilo era só o que me era permitido mostrar”, confessa.

Até ali, a relação de Sónia com os homens “era ao murro e ao pontapé”, explica. Com Diogo (nome fictício) foi diferente. Conhecem-se no ano de 2000 no quartel. No espaço de um ano, a amizade flora para um relacionamento mais sério. Sónia não consegue resistir ao amigo “giro, loirinho de olhos azuis”. Os 23 anos de Sónia e a pressão das amigas empurram-na a constituir família. “Se passas esta idade, ficas encalhada. Ninguém te vai querer”, aconselham.

Áudio: “Quando estamos chateados, sai tudo o que não presta. Sai o lixo todo.”

“Foi uma relação intensa e que evoluiu muito rapidamente”, afirma Sónia. Em 2002, dão o nó. O sonho de ser mãe sobrepôs-se às discussões agressivas entre os dois e Margarida nasce em dezembro de 2005. A militar forte e inquebrável vê-se acorrentada com uma filha nos braços, presa a uma guerra que coloca em risco as vidas de ambas. A sua única arma é o silêncio. Sónia chega mesmo a contar alguns episódios violentos a amigas mais próximas: “Estás a ver esta nódoa negra? Foi ele”. Ninguém acreditou: “Eu conheço-o, Sónia. Ele não era capaz de fazer isso.”

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Ponto final parágrafo

Foi em 2009 que Sónia decidiu quebrar o silêncio. Num gesto desesperado, procura a ajuda de um velho amigo da PSP. “Vou mandar-te um e-mail e quero que o leias com muita atenção”, diz Sónia assim que Luís (nome fictício) lhe atende o telemóvel. Depois de desligar, escreveu tudo: as discussões, as agressões, o medo em que vivia. E-mail enviado, o telemóvel toca poucos minutos depois. “Sónia, o que é isto?”, questiona-se Luís. “Em dois dias estás fora de casa”, assegura. Sónia sente o alívio nas palavras do amigo.

Dois dias passaram desde o último telefonema. O sol nasce na manhã do dia 15 de janeiro de 2009, como qualquer outro dia. Mal Diogo sabe que a vida do casal ia mudar radicalmente. Sónia premeditou tudo e utilizou a frieza que aprendeu no meio militar. Como é habitual, Diogo sai de casa às 6h em ponto para ir trabalhar. Sónia, ainda pouco convencida, liga ao irmão mais velho a contar o que está prestes a fazer: “Mano, é agora.” Mesmo sem saber ao certo o que se estava a passar, o irmão dá-lhe força: “Vai. Depois contas-me o resto, mas agora vai. Sai daí.”

Veste a filha como se a fosse levar ao infantário, com apenas uma muda de roupa na mala. Prepara o carrinho da pequena Margarida e despede-se de casa. Seguem a pé até à estação de comboios, onde apanham o comboio em direção a Lisboa com destino ao Gabinete de Apoio à Vítima. Lá seriam esperadas em segurança. “Eu tremia por todo o lado”, relembra Sónia. Os pensamentos desalinhados tomaram conta de si: “Meu Deus, o que é que eu estou a fazer? Vou deixar tudo assim?”. Olhar para a filha fê-la não olhar para trás.

A Casa Abrigo abriu as portas a Sónia e a Margarida. Assim que chegaram, Margarida é separada da mãe. “O que é que estão a fazer?”, questionou Sónia, ainda agitada e confusa. “Não se preocupe, agora estão em segurança”, tranquilizam duas funcionárias da APAV. Encaminham Sónia até uma sala para poder respirar. “E foi aí que me permiti chorar. Chorar e ser vista a chorar. Ser ouvida sem barreiras, sem máscaras e sem silêncio.”

Áudio: “Não quero mais isto”

Epílogo

Sónia e Margarida saem da Casa Abrigo em 2011, e passam a viver dois anos em casa de uma amiga. Sónia descobre o Reiki em 2012. Hoje dedica-se profissionalmente à terapia das massagens, onde encontrou a cura para o medo que tinha do toque. Sónia e Diogo não ficaram presos no papel de vítima e de agressor, tendo ambos conseguido seguir em frente. Margarida, hoje com 15 anos, tem agora “duas famílias perfeitas” e unidas.

A história de Sónia é apenas um dos 6.682 pedidos de ajuda prestados à APAV no ano de 2009, segundo o relatório anual da APAV. Sónia poderia ter sido a 30ª mulher assassinada nesse ano, às custas do silêncio vivido.