Luciana Maruta dispõe de um percurso profissional exclusivamente ligado à prática jornalística. Formada em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, exerce a profissão desde 2007. Mais recentemente, em 2021, juntou-se à equipa de colaboradores da Divergente, uma revista digital de jornalismo narrativo. A partir da sua experiência enquanto profissional na área do jornalismo independente, Luciana analisa a liberdade de imprensa na atividade jornalística portuguesa.

No seu ponto de vista, existe alguma restrição sobre temáticas a abordar no jornalismo?

Essa pergunta depende muito do órgão de comunicação onde tu estás inserido. Existe uma grande diferença entre os media tradicionais e um projeto independente como a Divergente, porque no caso da Divergente o que acontece é que em coletiva, não temos de dar cavaco a ninguém; a proposta segue se em grupo fizer sentido, e for um tema que faça sentido também tendo em conta o nosso posicionamento e os nossos critérios editoriais.

Nas redações dos medias tradicionais existem sempre chefias muito vincadas. Eu já vi acontecer que o tema não passa porque não tem muito interesse ao público, mas não interessa àquilo que faz movimentar os órgãos de comunicação que, quer queiramos quer não, são negócios. Aceitam publicidade, têm de dar dinheiro para pagarem ordenados e são entendidos dessa forma. E muitas vezes os critérios editoriais que surgem nos estatutos do próprio órgão de comunicação e na linha editorial não conseguem ser cumpridos por causa disso.

Agora, se existe restrição de temas, não. Qualquer jornalista pode propor qualquer tema para tratar; se isso depois vai a avante, isso depende muito de quem é a chefia e de quão difícil é fazer passar o tema ou não e as repercussões que tem.

Alguma vez se viu impedida de publicar um certo artigo? De um tema, uma história, que considerasse relevante no domínio público?

A título pessoal, nunca me deparei com essa situação. Mas acontece. Nós conversamos e acompanhamos as pessoas mais próximas, cujo testemunho confiamos. Muitas vezes o que acontece é olha, tu fazes este tema, mas tens de ir falar com a, b, c, não podes falar com o fulano x, y, z. E isso também é uma forma de restringir a forma como tu abordas os temas, pode ser considerado um impeditivo. Agora, isto não é regra. No meu caso pessoal, eu nunca me deparei com uma situação dessas.

Às vezes também somos limitados o sentido em que queremos consultar mais pessoas, e não nos é possível. Quando entramos no mercado de trabalho, queremos aprender tudo, mas não pode ser assim. Se começamos a questionar tudo e fazer muitas perguntas, às tanta já existe um sistema de montagem, uma linha de montagem, portanto chegas ali e colocas uma pedra na engrenagem. Torna-se mais difícil de sugerir outras possibilidades.

E considerando a sua experiência enquanto jornalista, alguma vez obteve uma reação menos positiva por parte do público pela divulgação de uma história ou de um artigo?

Estava a lembrar-me do último trabalho da Divergente – “Por ti, Portugal, eu juro!”. Este trabalho é um trabalho com uma abordagem específica, não é? Este tema dos comandos africanos da Guiné e do facto de terem participado e terem integrado as Forças Armadas Portuguesas, pode ser visto sob várias perspetivas.  Aqui a perspetiva da Divergente foi ouvir os comandos africanos. Existiram comentários porque é que não fizeram isto e porque é que não foram ouvir também os militares da metrópole. Parece que os artigos têm de cobrir todas as perspetivas e todos os ângulos e quando só se olha para um lado parece que já estamos a esquecer tudo. Não. Todos [os temas] têm essa possibilidade, de ser abordados por perspetivas diferentes, olhares.

Neste trabalho em concreto deparámo-nos agora com a dificuldade de pedir a autorização para publicação de um documento, que é público. Qualquer pessoa se pode deslocar e pedir para aceder àquela documentação. Qual é a diferença de podermos publicar com o devido enquadramento e identificando a fonte? Pode ser considerado como limitador àquilo que é a liberdade de imprensa.

E a questão de não falarem, não darem entrevistas, de não se pronunciarem. Essa resposta também impede que exista uma cobertura mediática ou impede a publicação do artigo. Uma cobertura que seja ampla e que pretenda ouvir todos os lados de uma história não é conseguida.

De um modo geral, qual é a sua perceção da liberdade de imprensa no jornalismo atual?

Quando pensamos em liberdade de imprensa, aquilo que vemos olhando para exemplos internacionais, pessoas estão presas, pessoas têm de fugir e de se exilar para continuar a escrever, retratar os temas que acham que são importantes. Em Portugal, nós temos uma realidade em que não temos casos desse tipo com essa gravidade. Temos casos em que não existe um acesso fácil, uma informação.

Isso acaba por travar muito a liberdade que temos para fazer o nosso trabalho e para investigar, atrair mais fundos, porque o tempo que se perde muitas vezes, para obter autorizações. E por vezes acaba por não se conseguir justificar uma informação. Para dizer que aquela informação é a verdade e a ética, mesmo cruzando informações de fontes credíveis, muitas vezes precisas quase de um selo de qualidade através de um documento. Acaba por impedir um trabalho detalhado e muitas vezes acabas por deixar o tema.

Existiram casos de reportagem, aqui no Divergente, em que foram feitas reportagens por pessoas em posições de privilégio, tinham outros trabalhos, e por isso investiram o seu tempo pessoal e o seu próprio dinheiro para concretizar trabalhos em que acreditavam, trabalhos que queria publicar, casos que queriam trazer a público. Mas isto é recorrente, a maior parte não tem esta possibilidade. E por vezes os editores só permitem que existam deslocações ou consulta de outros fontes, se houver financiamento do próprio jornalista. Portanto, jornalista é uma profissão precária.

Ou seja, a importância do jornalismo enquanto serviço público é uma ideia que ainda não está muito bem definida?

Acho que hoje a profissão do jornalista está descredibilizada. Como se qualquer pessoa através das redes sociais pudesses comunicar, divulgando até informação falsa. Mas não é qualquer pessoa que faz o trabalho que um jornalista faz. Todas as profissões têm uma técnica. O trabalho do jornalista existe para ser serviço público. Diferenciamo-nos pelo alcance que temos. Tem de existir espaço para o jornalismo de investigação com tempo, espaço e dinheiro, apoios.

A seu ver, os dados estatísticos em relação aos níveis de liberdade de imprensa, que indicam Portugal como um dos países com um índice mais confortável (em sétimo lugar) correspondem à realidade da atividade jornalística atual em Portugal?

É preciso ter em consideração o contexto político, social, económico desses países. Nós se calhar estamos em sétimo lugar, porque em comparação a estes ataques à integridade física das pessoas, quer dizer nós não temos isso, até à data, E essas situações são mais gravosas.

Mas no nosso caso, tendo em conta o nosso contexto, isso influencia de outra maneira. Se não houver mudança, vai piorar a qualidade do jornalismo, vai contribuir para que exista o desinteresse do próprio profissional, que faz o que lhe pedem sem qualquer capacidade crítica, pois sabe que vai cair em saco roto. Isso é o fim da linha. Se isso passa a ser a regra e não a exceção, se o jornalista se rende ao sistema, acaba o jornalismo enquanto serviço público. A ideia que eu tinha de as redações a fervilhar, acho que já não acontece.

No âmbito da liberdade de imprensa, o que é que o jornalismo independente possibilita?

É possível efetuar trabalhos que resultam da interação de profissionais de várias áreas, com maior pormenor, mais aprofundados. Com a informação diversificada de profissionais de várias áreas, produzir trabalhos do modo que será melhor para transmitir a nossa intenção, para ter impacto nas pessoas. Ter uma liberdade de formato, podermos misturar tudo ou privilegiar algum formato, acho que foi a coisa mais inovadora com que me deparei, tu escolhes como queres transmitir aquela informação. É algo diferenciador, pegando por exemplo no caso da Divergente. Também a liberdade de abordagem de temas é completamente diferente. A questão da curiosidade que o jornalista tem para investigar um tema, para o incentivar a pesquisar. Por último, o tempo. É a coisa que está no topo, temos a possibilidade de publicar uma investigação que durou seis anos, por exemplo.