No Tortosendo, há uma nova geração de famílias ciganas em construção

Eunice Parreira e Sofia Gabriel (Universidade da Beira Interior)

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Tortosendo

No Bairro do Cabeço, uma localidade da freguesia do Tortosendo do município da Covilhã, vive a maioria da comunidade cigana desta vila. No pequeno povoado animado e acolhedor sentem-se os ventos da mudança.

Com a renovação dos prédios, agora mais coloridos, os moradores sentados em cadeiras dos mais variados feitios reúnem-se para dialogar entre si.

À porta da loja social está Ana Rita Cardoso, com um sorriso no rosto e feliz por compartilhar a sua história. Natural do Pego, uma aldeia em Abrantes, a jovem foi criada fora da comunidade cigana por uma senhora a quem sempre chamou “avó”. Ao relembrar com carinho a sua infância, conta que a mãe a deixava com a “avó” para ir trabalhar para os mercados. Ana Rita viveu durante algum tempo sem nunca se aperceber que, na verdade, era cigana nem o que é que isso significava.

Ainda que a sua estadia no Pego tenha sido breve, a família de Ana Rita mudou-se para o Entroncamento após a morte desta senhora. Foi a partir deste momento que tudo se tornou diferente. Conta que, “quando fui para a escola, eu pensei que fosse como as outras, não que era cigana, nem deixava as minhas amigas andar com as ciganas”. Ana Rita só soube mais tarde que pertencia à etnia cigana quando, numa conversa com mãe, esta lhe explicou as origens da família. “Foi aí que eu comecei a conviver mais com os ciganos. E eu gostei de saber que era cigana, gostei muito”, confessa.

Agora, com 25 anos, a jovem que estudou até ao quinto ano admite que a vida fora da comunidade contribui para uma nova mentalidade, nomeadamente a do seu pai, que sempre a incentivou a estudar. “O meu pai nunca foi contra, tanto que os meus irmãos estudam, tenho um que é chef de cozinha. O meu pai sempre gostou que estudássemos. Há teorias que os pais não deixam porque não querem, são maus, mas o meu pai nunca me proibiu de nada”, explica a jovem cigana. É por causa desta vontade de aprender que Ana Rita frequenta atualmente um curso de jardinagem, sem nunca esconder o seu sonho de ajudar os outros através de massagens terapêuticas.

É com a Coolabora, uma associação com o foco na área da intervenção social, que a etnia cigana tem caminhado para uma nova integração na sociedade. Com um papel fulcral na aproximação entre culturas, esta corporativa tem incentivado os jovens a procurar mais formação para construir as bases de uma melhor cidadania.

Ainda que, para a cultura cigana, o casamento seja comum numa tenra idade, Ana Rita contrariou a tradição ao casar-se aos 23 anos, uma idade considerada já tardia, com um rapaz da comunidade cigana.

Com uma vontade de aproveitar a infância e os dias passados em casa dos pais, a jovem cigana revela que casar nunca foi a sua prioridade. “Eu sempre fui aquela menina que queria viver, queria estar com os pais, queria brincar às escondidas com as amigas, sempre fui assim, não pensei ‘eu vou casar agora’”, conta a jovem.

Com uma experiência de vida diferente da maioria dos ciganos da sua comunidade, Ana Rita ganhou uma perceção renovada acerca do casamento. “Já estive a dizer ao meu marido, quando tiver uma filha, ela não vai ter telemóvel e essas coisas para não casar tão nova”, explica Ana Rita.

 

Também as novas tecnologias chegaram à comunidade do Tortosendo, e apesar de ter conhecido o seu atual marido pelo Instagram, Ana Rita relembra que vê-lo ao vivo foi o momento decisivo, um amor à primeira vista, tal como acontece nas novelas. Casada há dois anos, a jovem afirma que acertou na sorte grande ao ter um marido com quem pode partilhar as tarefas domésticas. “Pode haver maridos bons, mas o meu é muito diferente de todos. O meu marido vê que eu não estou bem, que eu preciso de alguma coisa e ele ajuda-me”, aponta.

Com o casamento consumado, as raparigas da etnia cigana são obrigadas a mudarem-se para casa dos sogros até que o casal consiga uma casa própria, sendo esta uma das maiores dificuldades que os jovens casais enfrentam. Destinadas ao lar, as mulheres partilham com a sogra as tarefas domésticas. No caso de Ana Rita, é uma partilha harmoniosa. Feliz por ter uma sogra que considera como mãe, a jovem agradece todo o carinho que recebeu da família do marido. Confidencia que, “às vezes, não estranho a minha mãe porque ela [a minha sogra] é como se fosse minha mãe”.

Sem distinguir o cigano do não cigano, Ana Rita encontrou uma família na comunidade do Tortosendo, que nunca pensou ter. Longe da sua cidade natal, confessa que a família é um importante pilar na sua vida. “É bom termos uma família, é bom termos pai, mãe, irmãos, tios, primos… Às vezes eles ligam-me a perguntar se eu estou bem porque eu estou mais longe de todos. É bom ter uma família porque isso é o que eu quero, ter uma família grande”, conta a jovem cigana que leva tanto a sua família cigana como não cigana no coração.

Do Brasil para Tortosendo

Também com a ideia de que a união fortalece os laços familiares, Mateus Vicente mostra orgulho na sua família que transcende fronteiras. Nascido em Belo Horizonte, no Brasil, o jovem de 25 anos cresceu entre Portugal e o seu país natal. Com o coração dividido, foi o casamento com uma jovem cigana que o fez ficar no Tortosendo.

Com um casamento à moda cigana, Mateus fugiu para casar com uma rapariga que já conhecia. Sem a possibilidade de namorar, entre os jovens a atração é a única forma de comprometer os noivos. Hoje, com maior liberdade, são os próprios que escolhem com quem querem dar o nó, e Mateus não foi exceção. O relacionamento às escondidas dos pais fez com que o jovem decidisse quebrar as barreiras tradicionais ao aparecer um dia já casado.

Fugir para casar é uma decisão sem retorno, e muitas vezes mal vista para as mulheres caso regressem sem o compromisso. “A mulher ficava mal vista por ter fugido e voltado, e as nossas famílias iam ficar mal umas com as outras, já não podíamos falar”, explica Mateus.

Com a escolaridade concluída somente até ao 5.º ano, o seu sonho é alcançar uma vida mais estável, uma vez que a precariedade afeta cada vez mais os mercados e feiras, o principal meio de subsistência do cigano. Mateus admite que “ir para a universidade já não dá e também não quero. Pretendo arranjar um bom emprego, ganhar um ordenado e ter um futuro financeiramente bom.”

É com a idade a tornar-se sinónimo da sabedoria e conhecimento que os mais jovens são orientados, desde a infância, pelos conselhos dos idosos. Com a mais alta estima e respeito, os mais velhos são para esta etnia a voz da experiência e, por isso, as suas palavras valem ouro.

Tradições antigas

Bina Ramos, natural de Odivelas, sente vontade de valorizar e preservar os mais idosos, pois sem eles a família cigana não teria o mesmo valor.

Bina, casada há sete anos com o pastor cigano da Igreja Evangélica de Filadelfia, frequenta com regularidade os cultos de fé improvisados numa garagem na freguesia do Tortosendo. Os encontros religiosos têm sido impulsionadores da mudança nesta comunidade, condicionando alguns comportamentos ao proibir o contacto com álcool e drogas e renegando a violência. Aspetos para os quais a Coolabora, com a sua presença assídua no terreno, também chama a atenção regularmente.

A jovem encontrou em Deus o seu propósito de vida. A sua família numerosa fá-la sentir-se completa. “Nunca pensei em casar porque nós vivíamos na casa do meu pai, estava com as minhas cunhadas e muitos sobrinhos. Então nunca pensei no amanhã, eu só vivia o hoje. Isto [o casamento] foi um propósito de Deus”, confessa Bina.

O casamento com um jovem tortosendense foi uma forma de constituir uma nova família numa região desconhecida. Aos 27 anos, e com o pensamento naquilo que o futuro trará, espera que em breve o seu percurso seja enriquecido com descendentes que possam continuar a renovar a comunidade. “A família toda está pronta para nos ajudar, há sempre união, estejam onde estiverem, no Brasil, em Espanha, em todo o mundo, a família acolhe-nos e ajuda-nos muito. É muito importante”, revela a jovem cigana.

Com o medo de um casamento fora da etnia cigana a ditar o fim da escolaridade, Bina conta que consigo não foi diferente. Retirada da escola em tenra idade, aprendeu apenas a ler e a escrever. Uma realidade que ainda está muito presente nesta comunidade que considera que o contacto escolar entre diferentes etnias conduz a casamentos indesejados.

“Eu só fui até à terceira classe. Os meus pais tiraram-me da escola, porque, na nossa etnia, já estamos maiorizinhas e eles tinham medo de que nos juntássemos com a etnia não cigana”, desabafa Bina.

Novos caminhos

A Coolabora, uma associação que tem desempenhado um papel fundamental na mudança de paradigma nas escolas, defende que a responsabilidade não deve ser colocada apenas nas comunidades ciganas. Integrar as crianças ciganas na etnia maioritária envolve um trabalho conjunto e demorado, que passa também por mostrar à própria etnia que a escola é a solução.

Criada em 2008 por um grupo de cinco amigas já com experiência na área da intervenção social, a Coolabora é uma cooperativa com intervenção nas áreas da economia social, voluntariado, inclusão social e violência doméstica e de género. Nasce como uma forma de criarem um projeto próprio e independente das pressões partidárias com o objetivo de contribuir para a inclusão social das crianças e jovens do Tortosendo.

Desde 2010 que a Coolabora estabelece uma relação próxima com a comunidade cigana através do projeto de inclusão social “Quero Ser Mais E8G”. Coordenado pela socióloga Antónia Silvestre, o projeto é uma iniciativa governamental a nível nacional, promovida pelo Alto Comissariado para as Migrações, destinada a jovens oriundos de meios vulneráveis.

“Há um desconhecimento muito grande, e esse desconhecimento traduz-se depois em exclusão, em estereótipos, que nem sempre são verdadeiros, e em sofrimento”, explica Rosa Carreira, cofundadora da Coolabora e responsável pela formação e intervenção de jovens na área dos direitos humanos.

 

Antónia, que trabalha diariamente no terreno com esta comunidade e que já viu crescer várias gerações, destaca três importantes pilares na cultura cigana que se têm mantido com o passar dos anos. Família, luto e religião distinguem os ciganos do resto da comunidade.

 

Com as horas livres passadas em família e uma forte união e carinho entre todos, esta etnia vive o luto intensamente ao sentirem-se desamparados com a morte dos patriarcas e matriarcas da família. “Há sempre um respeito muito grande pelos mais velhos e, portanto, acaba por ser uma aprendizagem também para as crianças respeitarem as pessoas mais velhas da comunidade cigana”, explica Rosa.

 

A religião, outro importante pilar nesta etnia, deu origem a uma nova forma de abordar conflitos numa altura em que moralidade se renovou com a nova geração empenhada em seguir os valores evangélicos. “Há uma tentativa de conduzir os jovens de maneira a que não tenham desvios, nem se diz só desvios daquilo que são as tradições ciganas, mesmo desvios comportamentais socialmente aceites”, afirma Antónia Silvestre.

Num tempo marcado por alguns progressos a nível social, os jovens da etnia cigana assemelham os seus hábitos aos da comunidade maioritária. Ingressando nas redes sociais e com o seu próprio telemóvel, “os jovens também já bebem daquilo que são as influências de uma globalização que é veiculada através dos mais variados meios de comunicação social”, clarifica Antónia.

Numa tentativa dos mais velhos fazerem cumprir tradições muito próprias da comunidade cigana, como ilustra a socióloga e coordenadora do projeto, o papel da Coolabora “é no fundo devolver àqueles que não têm a capacidade de acreditar e de pensar que podem fazer tudo quanto os outros jovens podem fazer”.

Com um longo caminho ainda por percorrer, também as mentalidades de uma sociedade em geral têm de ser trabalhadas no sentido de criar uma maior inclusão. “Muitos continuam a acreditar que são os ciganos que têm de mudar para se integrar. A Coolabora parte de um pressuposto diferente, o de que é preciso mudar pelas duas partes. Enquanto a sociedade maioritária não perceber que há coisas que têm de ser muito diferentes, a mudança nunca pode acontecer porque não se pode maltratar as pessoas e achar que elas se vão querer integrar”, remata Rosa Carreira.