Coros de “gente nova”. Os jovens embaixadores da música coral

Inês Batista, Maria Carvalho e Nuno Diogo Pereira (Universidade doMinho)

As universidades sempre andaram de mãos dadas com a cultura. As tunas académicas, em especial, acompanham o imaginário coletivo do ensino superior, mas não só de tunas se fazem os grupos culturais. Em Portugal continental, existem 17 coros universitários que, embora surjam normalmente associados à música “erudita”, continuam a captar jovens e a sobreviver aos desafios do tempo. Afinal, o que faz um jovem juntar-se a um coro universitário?

“Boa noite! Venho para o ensaio do Coro Académico.” É a frase que os seguranças do campus de Gualtar da Universidade do Minho (UMinho) mais ouvem, todas as segundas e quintas-feiras à noite. “Vá lá e bom ensaio!”, respondem. Há mais de 30 anos que assim é. Já passaram pelo Coro Académico da Universidade do Minho (CAUM) mais de 600 pessoas. Estudantes de vários pontos do país, de áreas de estudo distintas, de vários contextos diferentes. Contudo, têm algo em comum: o gosto pela música.

“Quem se junta ao coro no primeiro ano do curso já tem interesse pela música”. É o vice-presidente do CAUM, João Pedro Quesado, que o diz. Integra a direção deste grupo cultural há dois anos, mas foi em 2017 que se juntou pela primeira vez ao coro. Graças à insistência por parte de um amigo, Quesado, como é conhecido, decidiu assistir a um ensaio, mas acabou a fazer teste de voz e a ocupar um lugar junto dos baixos.

João Pedro Quesado é vice-presidente do Coro Académico da Universidade do Minho

“Juntei-me ao CAUM no meu primeiro ano de mestrado”. Porquê? “ Foi uma altura em que tinha relativamente mais tempo livre e pensei em procurar fazer algo para além do estudo e do trabalho.” O jovem natural de Barcelos acabou por permanecer no coro universitário depois de terminar os estudos, por ter ficado a viver em Braga. “Os ensaios servem essencialmente para libertar a cabeça um bocadinho e espairecer”, confessa.

Carolina Portela, de 19 anos, vai mais longe. “O ambiente no CAUM é mesmo bom, tem um espírito de leveza e traz-me muita liberdade”, admite. A estudante do segundo ano de Medicina não deixou que a pandemia da Covid-19 impedisse que se juntasse ao coro que conhece desde muito nova: “Os meus pais têm amigos que fizeram parte do CAUM. Então, é tradição irmos todos os anos à Sé de Braga ver o concerto de Natal, o Puer Natus Est”.

Conhecer o CAUM e assistir todos os anos ao concerto de Natal não foram as únicas razões que levaram Carolina a integrar o grupo cultural. “Desde pequenos que eu e os meus irmãos ouvimos muita música, quer seja no carro ou em casa”, explica. A jovem estuda música desde os seis anos e frequentou o Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, em Braga. Na altura de entrar para a universidade, Carolina encontrava-se “reticente” sobre o que fazer, uma vez que “não sabia se queria música ou outra coisa”. Escolhida a medicina como futuro, faltava integrar a outra vocação: “Como tinha de ter música na minha vida fui para o coro da universidade”.

“Muitas das pessoas que se juntam ao coro têm um gosto musical mais específico, que as faz ver o coro de uma forma diferente, ou têm até uma experiência de conservatório”, explica João Pedro Quesado. No entanto, o corista garante que não é obrigatório ter formação musical para integrar o CAUM: “A maioria das pessoas não tem estudo musical. Chega e começa a aprender a ler uma partitura e, por isso, no início tem de haver uma certa predisposição para ir ao coro”.

O presidente da Associação Portuguesa de Música Coral (Coros Portugal), Paulo Lourenço, acredita que os coros universitários permitem unificar o tecido social do país, aproximando jovens com vivências muito diferentes. “O facto de se juntarem jovens de todas as proveniências, não só socioculturais, mas geográficas, é muito bom porque se criam laços e amizades em regiões muito diferentes”, afirma.

Patrícia Alves, de 23 anos, não tem formação musical e, ao contrário de Carolina, nem sempre teve uma boa relação com a música. A timidez e a falta de apoio familiar afastaram-na do sonho de estudar música. “Sempre tive muita vergonha de cantar em frente aos outros, mas isso não significa que eu não gostasse na mesma de o fazer e que não fosse uma maneira de eu dar vazão às frustrações e alegrias do dia a dia”, admite.

Aos 18 anos, a aluna de Estudos Interculturais Português/Chinês foi diagnosticada com um cancro na tiróide e acabou por ser submetida a uma cirurgia para a remoção total do órgão. “Na altura, avisaram-me que a cirurgia podia fazer com que eu perdesse a voz”, relembra. Além disso, podia ter de recorrer a terapia da voz e terapia da fala. “Quando acordei dei conta que falava num grito sussurrante. Meteu medo”, conta.

Para Patrícia, a entrada no coro foi desafiante. Além de estar fisicamente debilitada, a “ansiedade social” e o consequente medo de cantar em público deixavam-na de pé atrás. No entanto, a receção dos coristas foi suficiente para quebrar estas barreiras. “Em geral, toda a gente me aceitou muito bem. Tenho de agradecer ao maestro porque, quando lhe contei a minha história, ele próprio me aconselhou exercícios para recuperar a minha voz”, revela.

A corista adianta que a entrada no coro promoveu não só a recuperação da sua voz e o fortalecimento da sua saúde mental, como também um maior apoio por parte da sua família, em relação à música. “Desde que entrei para o coro, a minha família tornou-se quase que minha fã número um. Estão em quase todas as minhas atuações”, diz, sem esconder um certo orgulho.

Hoje, cinco anos depois, Patrícia é uma das contraltos mais velhas no coro. É a ela que as coristas mais novas recorrem para aprender o repertório, sem imaginarem o percurso que teve de percorrer e como o coro foi muito mais que um grupo cultural.

O estigma do eruditismo

“A música coral é a mais antiga da história ocidental, muito mais antiga que qualquer orquestra”, lembra Paulo Lourenço. Segundo o presidente da Coros Portugal, a evolução da música coral foi muito lenta e teve início nas igrejas. A associação dos coros à religião perdura no tempo, contribuindo para alimentar o estigma de que a música coral não é para todos.

Para Carolina, “um grupo coral não tem de ser erudito”. Assim, “um coro, para ser um coro, tem de ter pessoas com vozes diferentes. É o que nós fazemos no CAUM: adaptamos-nos e adequamos-nos a vários públicos-alvo”, diz. A corista acrescenta que não procurou integrar o coro universitário para fazer “algo mais clássico”, que a “desafiasse mais”, mas porque procura combinar o “espírito académico” com “música de qualidade”.

Por outro lado, João Pedro Quesado sente que ainda é necessário “tirar o peso da palavra ‘coro’” e destacar a sua vertente mais académica. Algumas das estratégias utilizadas para o efeito são a aposta nas redes sociais e a dinamização de momentos de convívio. “Fala-se nas digressões, nos jantares mensais, em coisas mais espontâneas, para mostrar que não somos só 30 pessoas a olhar para o maestro enquanto ele agita os braços. Não somos um coro formal”, conclui.

“Os coros universitários são muito importantes. Só tenho pena que não haja mais”

Um estudo encomendado pelo CAUM à empresa Aspera Hartmann, em 2009, dava conta da existência de 33 coros universitários em Portugal continental, o que correspondia a três por cento dos grupos corais do país (936). Treze anos depois, a matemática é mais simples. Há agora 17 grupos corais ativos com ligação a universidades públicas e privadas.

É no distrito do Porto que existe maior concentração de coros académicos (6), mas é em Coimbra que encontramos o mais antigo de Portugal e um dos mais antigos da Europa, o Orfeon Académico de Coimbra, com quase 150 anos de existência.

O presidente da Coros Portugal reconhece uma grande importância aos coros universitários, relativamente à manutenção da música coral portuguesa. “Um coro de uma vila portuguesa é um ponto de preservação da música nessa vila. De alguma maneira, os coristas, quando terminam os seus cursos, vão ser embaixadores da música coral. Portanto, nesse aspeto, os coros universitários são muito importantes. Só tenho pena que não haja mais”, confessa.

Paulo Lourenço é também diretor artístico do Coro da Escola Superior de Música de Lisboa. Trabalhando de perto com “coros de gente nova”, não poupa nos elogios. “Há, primeiro, uma energia maravilhosa, que só existe numa certa idade”, diz. “Depois, há uma ânsia, uma curiosidade natural pela música, que é muito importante e que vai formar esses jovens”.

Aproximar a cultura dos jovens, proporcionar momentos de descontração e criar ligações à região e à universidade são, segundo o vice-presidente do CAUM, os pontos fortes de um coro universitário. Quesado defende ainda que é importante o envolvimento dos jovens, não só na cultura, mas em todos os setores da sociedade: “Há muitos jovens com muitas ideias e com vontade de fazer coisas novas. Quando os jovens trazem mudanças é porque é preciso atualizar as coisas”.

Carolina Portela corrobora e acredita que a entrada no coro lhe abriu horizontes: “Se não estivesse no CAUM, provavelmente não sairia à noite para as festas da universidade e era mais triste porque não tinha música na minha vida”. Também Patrícia reconhece que o coro se tornou “uma segunda família”, tendo ultrapassado vários medos com ajuda dos coristas: “Sinto que saio do coro uma pessoa diferente: muito mais confiante e capaz de enfrentar novos desafios”.