Ser aquilo que sinto

Nascem num corpo com o qual não se identificam e depressa percebem que é necessário mudar. As dúvidas, os preconceitos, as ansiedades, acompanham grande parte da vida dos transexuais. Na tentativa de alcançar a felicidade, muitos recorrem a médicos, psicólogos e associações, que servem de âncora para não largarem a esperança de um dia poderem vir a ser quem verdadeiramente são.

Texto de Ana Carolina Freitas e Diogo Gouveia e fotografia de Rita Couchinho (Universidade Europeia)

Mia é uma jovem que, desde cedo, lutou para encontrar a sua identidade. Quando se dá início a uma mudança de vida drástica, há um longo caminho a percorrer, que pode muitas vezes encher-se de obstáculos e falsas expectativas.  

Mia é transexual e o seu caso não foi exceção. Apesar de ter tido uma infância feliz, a banal definição de normalidade fugiu muitas vezes da vida desta jovem, pelo facto de, desde criança, ter sentido que algo não estava certo. 

A irmã de Mia teve um papel determinante durante a sua adolescência. Na sua tentativa de passar despercebida, Mia projetava na irmã aquilo que desejava ser – desde o cabelo, à cor das unhas ou até à roupa que vestia – quase como se a sua imagem idealizada estivesse na pele de outra pessoa.

Durante a adolescência, na fase de clandestinidade, Mia teve sempre muitas dificuldades para se relacionar com os outros. “Eu tinha duas amigas e ninguém sabia quem eu era, precisamente por ser diferente”, afirma. 

Quando confrontada com as suas fotos de criança e de adolescente, Mia não esconde o desconforto com o que vê. “Eu usava caps […] e na altura eu detestava. Eu odiava esse estilo só que eu fazia isto porque queria aceitação e queria ser social como toda a gente”.  

Para a Psicoterapeuta Patrícia Câmara, tanto o sofrimento que a pessoa causa a si mesma, como o sofrimento causado pelos outros, que não são capazes de aceitar a diferença, está muitas vezes na origem de um pensamentos e comportamentos depressivos. “É como se a visibilidade que é trazida tornasse as pessoas duplamente invisíveis aos olhos daqueles que não suportam olhar para dentro de si próprios”, explica.  

A falta de informação nos meios de comunicação social também dificulta a (já) pouca representatividade da comunidade LGBTI. “Infelizmente não tive exemplos, fui eu que tive de ir pesquisar, fui eu que tive de ir aprender por mim mesma, porque não ensinam isso na escola, ninguém ensina isso na televisão”, reforça Mia. 

Ainda hoje há uma grande incoerência entre as definições de sexo e género. Para facilitar o entendimento de todos estes conceitos, a iniciativa The Genderbread Person criou uma ferramenta de ensino “para quebrar o grande conceito de género em pedaços pequenos e fáceis de digerir”. Com esta infografia pretende-se explicar que para além de serem conceitos que estão ligados entre si, são independentes uns dos outros. 

Para Mia, a família, como fonte de grande apoio e suporte, tem também de ser a primeira a rejeitar o preconceito e a proceder da maneira mais natural possível, para que quem pretende fazer a transição se sinta num ambiente confortável e sem opressão.

No que toca ao acompanhamento psicológico, todas as pessoas que mostrem interesse em mudar de sexo têm de passar por uma série de testes que, de acordo com Mia, servem apenas para perceber se existe algum fator que possa estar a influenciar negativamente a decisão. 

Já Gabriela Oliveira, médica de família e especialista em sexologia, mantém a crença de que a inexperiência e a falta de formação da comunidade clínica, contribui para o preconceito e diagnósticos tardios. “Estes casos, apesar de tudo, são raros […] e também porque estas questões da perturbação da identidade de género foram levantadas muito recentemente, a maior parte da população médica, dos médicos mais velhos, nunca ouviram falar destes temas na faculdade”, realça.  

A médica acrescenta que pelo facto de o transtorno de género ainda ser muitas vezes considerado uma perturbação da saúde mental, os pacientes são encaminhados não para um psicólogo, mas sim para um psiquiatra, revelando aqui o preconceito que ainda se guarda relativamente a estas questões. No entanto, este procedimento já não é recomendado pela Direção Geral de Saúde (DGS). 

Afetada pela recém-conquistada liberdade de ser quem é, Mia começa a explorar mais a sua orientação sexual, chegando à conclusão que se identifica como pansexual.

No entanto, a associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) refere que, mesmo que seja possível a redefinição da orientação sexual, não é algo que aconteça recorrentemente em pessoas transgénero.

No que diz respeito à vida sexual de um trans, o testemunho de Mia é de que tudo decorre com normalidade. As mulheres trans possuem uma genitália perfeitamente funcional, semelhante à de todas as outras mulheres. Ainda assim, Gabriela adverte para a possibilidade de existirem contratempos que podem aumentar o sofrimento vivido.

No que toca a relações interpessoais, Mia afirma que não esconde a sua transexualidade, mas que prefere que as pessoas saibam antes de a conhecerem pessoalmente, já que mostra a sua faceta ativista nas redes sociais. “Não conto, mas […] não faço questão de esconder, até porque nas redes sociais falo disso abertamente.”  

Mia confessa que sempre foi uma pessoa que se deixa levar muito facilmente pelos sentimentos, o que muitas vezes a leva a criar expectativas que não são correspondidas.  

Anastasiya Adamenko, uma das melhores amigas de Mia, acompanhou-a neste processo de mudança e considera que “cada vida é uma vida e ninguém tem o direito de opinar sobre a vida do próximo”. A jovem revela ainda o estigma que sente em relação à comunidade trans em conversas com outras pessoas. Para Anastasiya, mais do que a genitália, ser mulher é algo que se sente.

Na sequência dos tratamentos e da cirurgia, as mulheres trans parecem sofrer de uma exigência e de uma pressão maiores. Patrícia Câmara confirma que a sociedade impõe uma certa necessidade de confirmação do seu valor por parte das pessoas que as rodeiam. 

Mia afirma que se considera sortuda por ter feições ditas femininas e sente-se grata por nunca ter passado por situações graves de discriminação, tanto na rua, como profissionalmente. 

Não obstante, a especialista Gabriela Oliveira alerta que não se consegue saber ao certo quantas pessoas sofrem deste tipo de abusos pela falta de informação que há relativamente a este assunto. “O mais importante é refletir o porquê de não haver dados, porque os dados existem, não são é revelados, digamos, à comunidade científica e à sociedade em geral. Eles existem, nós é que não os procuramos”. 

Mia desabafa sobre a ansiedade (principalmente social) que sentia antes da mudança de sexo, que melhorou, mas que não desapareceu, não só pelas pessoas, mas também pela maneira como encara a vida. “Um dos meus objetivos para este ano é ir ao psicólogo e […] começar a falar sobre os meus problemas de ansiedade que é uma coisa que me afeta bastante”, confessa. 

Como mulher trans, Mia confessa que precisa de validação, (mais do que gostava), quase como se necessitasse da aprovação de outras pessoas para se sentir “verdadeiramente” mulher. A aceitação provoca um esforço e preocupações redobradas que vão estar para sempre presentes na sua vida. 

Apesar das dúvidas, Mia vive hoje a mudança de olhos na oportunidade que tem para se reinventar e na liberdade de viver sem fingimentos. Em termos profissionais Mia é uma verdadeira “faz-tudo”. Já esteve ligada ao marketing, ao design de moda, já tirou um curso de esteticista e recentemente integra o elenco de uma série da RTP Play, dirigida por Justin Amorim. 

Mia afirma que, neste momento, pretende explorar o mundo da representação e que não tem medo do que o futuro lhe pode oferecer em termos profissionais, mas principalmente a nível pessoal. “Eu nunca fui uma pessoa de querer ter filhos e criar uma família. […] Se acontecer, aconteceu, se não acontecer, não acontece. A minha família para mim acho que acabam por ser as pessoas que me rodeiam” 

De acordo com os dados do Instituto dos Registos e Notariado, entre 2011 e 2020, 1195 pessoas recorreram à alteração de género, sendo que destas 718 são homens trans e 477 mulheres trans. 

Gabriela Oliveira afirma que tem havido um aumento progressivo do número de cirurgias que são feitas, o que pode significar uma normalização deste tipo de realidades perante a comunidade clínica. Em 2020 os pedidos para a mudança de sexo aumentaram, registando um total de 230 casos.   

No entanto, também neste ano foi assinalada uma desproporcionalidade entre o número de pedidos e de cirurgias realizadas. Na Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual do Hospital de Coimbra (URGUS), realizaram-se apenas quatro operações genitais e de mama, devido à situação pandémica, mas também pelo facto de estas não serem consideradas cirurgias de urgência.