Pratica desporto desde pequena. Com 20 anos, foi diagnosticada com esclerose múltipla, mas a doença só revelou a sua determinação. Telma quer provar que quem vive condicionado pode alcançar os mesmos objetivos que uma “pessoa saudável”, e o exercício físico pode ser a boia de salvação.

No início, sobressai a timidez que desenvolveu com o tempo. A maturidade nas palavras revela algo invulgar numa jovem de 22 anos. E a conversa começa a fluir: as motivações, as recordações. O porte atlético esconde os sinais da doença, mas Telma Barreto fala dela sem grandes rodeios. “Eu ajudo-me a mim, ao falar sobre isto, mas também estou a ajudar as outras pessoas”, esclarece.

Tem uma irmã e um irmão. Não está com eles tantas vezes quanto queria, porque foi com os avós que cresceu, em Sintra. Foram eles que lhe ensinaram quase tudo aquilo que sabe e que é. O resto é experiência. Pouca, parece, mas suficiente para “a vida organizada” que sempre desejou ter.

Em pequena, passava os fins‑de‑semana e as férias com a família no Parque Verde, o parque de campismo, no Seixal. Jogava à bola, marcava uns cestos e, por vezes, ia ao ténis. Pelo meio, mais umas modalidades da moda. Observava os amigos mais velhos e repetia. Gostava de andar de bicicleta, explorar o pinhal lá perto e aproveitar os fins de tarde a brincar antes da hora de jantar. Mas era a piscina que mais a atraía, principalmente nos dias quentes de Verão.

Começou na natação com poucos meses de idade, “claro que com ajuda”, salienta. Foi isso que lhe deu o gosto pela água. Sonhava ser bióloga marinha, termo complexo, mas mais realista do que “treinadora de golfinhos”. Assim, podia juntar o útil ao agradável: os animais, a água e o desporto.

Entrou na escola com seis anos, como as outras crianças, mas sempre depositou uma disciplina incomum em tudo aquilo que fazia. “A Telma era uma criança que não dava muito trabalho”, comenta o avô Renato, “na altura, já demonstrava alguma responsabilidade”. Se isso se deveu ao rigor da natação, Telma não sabe responder, mas é provavelmente uma virtude.

O “esforço nos estudos”, como classifica, deu frutos também na paixão pelo desporto. Com 11 anos, entusiasmou-se com o voleibol, e conciliou-o imediatamente com a escola e a natação. Durante os seis anos que praticou a modalidade, treinou nas escolas que frequentou, jogou em várias equipas regionais e federou-se.

Quando completou o ensino básico, escolheu a área das ciências, na qual sempre mostrou interesse. Certa vez, no 10.º ano, estava num torneio de voleibol, mas “uma jogada provocou-lhe uma lesão no polegar da mão direita que, infelizmente, dura até hoje”, recorda o avô. Telma afastou-se da natação e do voleibol para se focar nos estudos. Mas o desporto nunca a abandonou.

Com 16 anos, trocou as Ciências e Tecnologias por um curso profissional de Gestão e Contabilidade. Aos 19, fez um estágio através desse curso e começou a trabalhar. Mas não parou por aí. Telma gostava de passar pela experiência da faculdade e decidiu inscrever-se. No ano seguinte, começou a licenciatura de Contabilidade e Fiscalidade, no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa.

De dia trabalhava e de noite estudava. Nos tempos livres, mantinha o ritmo do desporto: fazia caminhadas, participava em corridas e ia ao ginásio carregar as baterias. Mas foi forçada a abrandar. No início de 2020, apareceu a dormência nas costas. “Eu ainda estava na faculdade, mas tive de sair”, começa por contar.

O diagnóstico

A esclerose múltipla é uma doença autoimune que afeta o sistema nervoso central, ou seja, o organismo reconhece as suas células como estranhas e ataca-as. A bainha de mielina, uma capa que reveste a parte da célula nervosa responsável pela condução dos impulsos elétricos, é especialmente atingida. A doença é crónica, ou seja, não tem cura, mas pode ser estabilizada com recurso a diferentes tratamentos.

Os sintomas são variados, e, por isso, a Esclerose Múltipla manifesta-se de maneiras diferentes em cada paciente. O caso de Telma não foi exceção, e a própria ressalva isso mal começa o relato do seu caso.

Estava no trabalho, sentada em frente ao computador, e começou a sentir as costas dormentes, do lado esquerdo. Não deu atenção porque não sentia dor; apenas um incómodo. “Achava que era do ginásio. Sempre gostei, por isso ia muito”, explica. Mas a dormência não passou. Pelo contrário, a sensação não parou de aumentar.

Um dia, ao almoço, queria levantar-se e não tinha força na perna. “Do nada”, exclama ainda com espanto. Foi nessa altura que percebeu que algo não estava bem, embora não acreditasse que podia ser algo sério. Considerou ir ao hospital, mas não sentiu que fosse algo tão urgente. Optou por marcar uma consulta de ortopedia, ainda sem saber se era a especialidade adequada.

De lá não vieram grandes respostas. Para o médico, estava tudo bem com Telma. Aconselhou-a apenas a uma coisa: “disse-me que tinha de marcar rapidamente uma consulta de neurologia”, relata a jovem. Não sentiu grandes receios, apenas surpresa. Marcou a consulta e foi. No próprio dia.

Telma conta que notou algo de estranho na conversa com o médico neurologista. Fez uns testes básicos de observação e voltou três dias depois, para fazer uma ressonância magnética e análises à medula.

No dia 20 de Março de 2020, chegou o veredicto: “confirma-se o diagnóstico de Esclerose Múltipla, de acordo com a suspeita do médico”, relembra. A conversa com o neurologista foi pelo telefone. Acabara de estalar a pandemia de covid-19, por isso Telma não pôde reunir-se presencialmente com o médico. Na chamada, veio a anuência do resultado e um pedido urgente. Era sexta-feira, e Telma precisava de ser internada imediatamente.

Telma descobriu um condicionamento para a vida. Na altura, não soube como lidar com ele. Apenas a confusão: “uma pessoa fica um bocado baralhada, sem perceber o que significa isto em termos práticos”, explica. Depois vieram o medo e a ansiedade. A reação da família não foi diferente. “De início, foi um choque”, conta o avô, ainda apreensivo com o avanço da doença e as sequelas que podem aparecer.

Na segunda-feira a seguir ao diagnóstico, Telma ficou internada. O tratamento foi muito intenso, “mais do que a própria doença”, afirma, “deita muito abaixo o corpo para poder atacar a inflamação e as lesões”. Contudo, era preciso cicatrizar o cérebro, que tinha sofrido tantos danos em tão pouco tempo de sintomas.

Terminado o tratamento de choque, Telma voltou à sua vida de trabalho e exercício. Manteve-se estável até Maio, quando chegaram as injeções que impediriam o desenvolvimento da doença.

Contudo, pouco mais de um mês após o início do novo tratamento, houve uma reincidência inesperada. Um surto da doença instalou de novo o pânico. Novos testes e mais tratamentos obrigaram Telma a pedir baixa no trabalho e a sair da faculdade. Teve de desistir do seu sonho, mas nada estava perdido.

O curso de Personal Trainer

Telma faz desporto desde que se lembra, e destaca a importância que a atividade física teve (e tem!) no combate à doença. Para a atleta, não se trata apenas de um complemento: “é uma coisa que faz parte de mim, que eu gosto e que me faz bem”, assevera.

A jovem da vida organizada e dos objetivos bem definidos prometeu a si mesma que, depois de terminar a licenciatura, queria formar-se em desporto. Mas a sua vida acabara de dar uma reviravolta com o diagnóstico de Esclerose Múltipla. Telma percebeu que não era realista manter a intensidade do trabalho e da faculdade. “Mas se calhar não era bem a coisa que eu mais queria”, reflete.

Enquanto pensava em alternativas, surgiu uma resposta. Ciente das suas limitações, Telma não hesitou em inscrever-se no curso de desporto que tanto queria. Começou no mês seguinte, e já sentia a diferença. “Isto é real, eu melhorei mesmo”, afirma com entusiasmo. E mais notória é a melhora quando o relato prossegue: “quando fui de férias de Natal, não tive o curso e piorei”.

De regresso às aulas, após a pausa letiva, volta o humor e a ansiedade baixa. Telma tem lidado com tempos difíceis após o diagnóstico. O stress é o seu ponto fraco, nítido também para as pessoas mais próximas. O desporto não é só um gosto, mas um remédio tanto para o corpo quanto para a alma. Anseia pela conclusão do curso, mas por agora aguarda a disciplina que lhe vai ensinar a trabalhar com populações especiais.

Este é o grupo de pessoas que Telma quer ajudar quando terminar o curso, no final de 2021. Gostava de se dedicar ao treino personalizado, um para um. Faz questão de não discriminar quem a procura, mas sente que este pode ser o seu contributo para com as pessoas que têm algum tipo de condicionamento e que não se sentem confortáveis a fazer exercício físico, quer por dificuldade ou por falta de motivação.

Para além do trabalho

A relação de Telma com a doença é bem resumida pelo namorado. “A melhor forma de lidar com a doença foi abraçá-la”, defende Tomás, peça importante no tratamento de Telma. Esta ligação nem sempre esteve presente. É comum surgir a fase da negação ou da interrogação constante: “porquê eu?”. A capacidade para ver um lado positivo no negativo requer aprendizagem e introspeção.

“É preciso respeitar o corpo e o máximo que ele pode dar, um dia de cada vez.” (Telma Barreto/Instagram)

Como não podia esconder mais a doença, Telma decidiu enfrentá-la. Percebeu que tinha potencialidade e disposição para ajudar outras pessoas a passar pela mesma situação. Esse foi o mote para contactar a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM), no início de 2021.

Falou com o Presidente da associação e disponibilizou-se para ajudar no que fosse preciso, nomeadamente na área do desporto. “Acho que é muito por aí que eu posso ajudar as pessoas, para além de conversar”, afirma. A conversa fluiu tão bem que, semanas depois, estava a colaborar na reativação do grupo de desporto da SPEM Lisboa.

Em Fevereiro e Abril realizou, com a associação, duas caminhadas virtuais que tiveram bastante adesão. Telma prefere atividades presenciais, mas só quando a pandemia o permitir. No futuro, quer colaborar em mais atividades ao ar livre deste tipo. “Falar e trocar experiências é muito importante”, acredita. Faz sobressair o seu potencial.

Afinal, quando Telma era pequena, não queria apenas ser treinadora de golfinhos. “Um próximo passo seria fazer licenciatura e mestrado para poder exercer psicologia e conciliar com a área do exercício físico”, avança. Sempre gostou de ajudar as pessoas a desenvolverem as suas capacidades.

Tem consciência das limitações provocadas pela doença e do medo que reacende quando pensa demasiado no futuro. Mas também tem a experiência do desporto e a evidência dos seus benefícios no corpo e na mente. Porque, “para a Telma”, conclui o namorado, “o desporto não é um esforço, mas um modo de vida”.