Viralizar a verdade:

o desafio do século XXI

Beatriz Pereira e André Moreno (Universidade Autónoma de Lisboa)

Se, pelo ditado, uma mentira repetida mil vezes se torna verdade, nas democracias a mentira é sinal de perigo. Com o poder de denegrir e pôr em causa a vida dos cidadãos e sociedades, as “fake news” e a consequente desinformação têm sido, cada vez mais, uma prioridade da União Europeia, que tem apostado em ferramentas na construção do muro da verdade.

Do relógio de 20,9 milhões de euros de Catarina Martins à criação da pandemia de covid-19 por parte de Bill Gates. Das declarações polémicas de Barack Obama sobre Donald Trump à ligação de Greta Thunberg a grandes empresas de energia. É certo que todos os dias títulos como estes são disseminados de forma alarmantemente rápida nas redes sociais e na Internet. E em comum partilham uma mesma característica: todos são falsos.

Apelidada de “doença do século” pela Comissão Europeia e encarada como um dos maiores perigos das sociedades democráticas, a desinformação e o termo “fake news” (ou notícias falsas) têm-se massificado a uma velocidade incontrolável, como sinónimo de informação falsa, imprecisa e enganadora, mas também de manipulação, distorção de factos e mentira.

A verdade é que o fenómeno não é recente, mas a pandemia do novo coronavírus propiciou o crescimento do conteúdo falso online a níveis mais críticos e de ameaça iminente à democracia, quando o bem-estar e o conhecimento dos cidadãos foi posto em causa.

Exemplo disso foram os mais de 18 milhões de conteúdos falsos sobre covid-19 que as redes sociais Facebook e Instagram retiraram das plataformas até abril de 2021. Mortes de doentes infetados com covid-19 encobertas, implementação de microchips na vacinação ou a ingestão de água com limão (e até desinfetante) para tratar a doença foram alguns desses exemplos, em muitos casos proferidos ou partilhados por líderes políticos como Jair Bolsonaro ou Donald Trump.

De facto, um dos acontecimentos que fez espoletar o termo “fake news” foi a candidatura de Donald Trump em 2016 à Presidência dos Estados Unidos da América, e consequente eleição para a Casa Branca.

As “fake news” são, no entanto, um termo ambíguo para descrever o problema da falsa partilha de informação: uma notícia é, por si só, a difusão de factos e conhecimentos reais e por isso não pode ser falsa. Mas a dificuldade intensifica-se quando atualmente é tido como notícia (e, portanto, verdade), todos os textos e informações que são disseminados na Internet e em particular nas redes sociais.

A intermediação de quem credibiliza e confere os factos – o jornalista – deixou de assumir a sua forma característica, alterando muitas vezes o seu trabalho diário de contar a verdade para o trabalho de desfazer a mentira.

Fotografias, vídeos, textos, websites, sites de meios de comunicação, todos podem ser deturpados de modo a falsificar a informação neles contida, seja por motivações políticas e ideológicas, económicas, com o ganho através de “likes”, publicidade e “pageviews” (sobretudo por efeito do chamado “clickbait”), mas também para prejudicar ou denegrir alguém ou algo.

A era atual de grande desinformação, resultado do maior número de tecnologias e redes sociais, levou a que o consumidor de informação se transforme também no produtor de conteúdo. Mas a realidade é que o perigo inerente a esta nova forma de fazer informação tem feito soar os alarmes nas democracias, que têm visto movimentos populistas ganhar terreno por meio das falsas informações que são divulgadas por políticos e apoiantes.

Fabrice Fries, presidente-executivo da Agence France-Presse (AFP), explica, porém, que as ameaças à democracia são inúmeras. “As ameaças são claras: há a banalização da mentira e, portanto, a desvalorização da verdade, que já não desempenha o papel de «superego moral» que desempenhou no passado; o relativismo generalizado, que coloca a informação de qualidade e as notícias falsas no mesmo nível, tal como especialistas num assunto e portadores de um «ponto de vista» no mesmo nível também; a radicalização dos extremos por plataformas e a divisão das audiências, dificultando a qualidade do debate público. O maior perigo é que acabamos por nos habituar à desinformação e já não nos surpreende que cada evento seja objeto de uma reescrita de conspiração. Apesar de já haver alguma mobilização, precisamos de um despertar coletivo”, refere Fabrice Fries.

“Antes, quando consumíamos informação, tínhamos um jornal ou assistíamos e ouvíamos a informação transmitida. Chamávamos de «âncoras». Agora, quando nos enviam um link no WhatsApp ou quando estamos online não temos essas âncoras.”

Sem que a informação seja verificada, confirmada e reconhecida pelos jornalistas, todos os textos da Internet, redigidos e partilhados por qualquer pessoa, podem ser passíveis de ser “fake news”. Por norma, acentuam-se pelos títulos sensacionalistas que apelam à emoção do público, com notícias sobre corrupção, terrorismo, abusos ou escândalos mediáticos. E é esta mancha de utilizadores de redes sociais que na grande maioria dos casos desinforma sem saber.

Quem, genuinamente, acredita no que vê e lê, ao partilhar e interagir com publicações infundadas, imprecisas ou erróneas, faz com que mais e mais pessoas tenham contacto com o que é falso, gerando mais desinformação. E neste ponto não importa a idade.

Paulo Pena, jornalista, fundador do Investigate Europe – uma cooperativa europeia de jornalismo de investigação – e escritor do livro “Fábrica de Mentiras: Viagem ao Mundo das Fake News”, explica que, apesar dos poucos estudos existentes, a experiência leva-o a assistir à ocorrência do fenómeno da desinformação em todas as faixas etárias.

Vídeo: Paulo Pena sobre a ocorrência do fenómeno da desinformação em todas as faixas etárias

Mais do que a falsidade do conteúdo das informações que circulam na Internet, agora a dificuldade passa pela rapidez da sua propagação. E para isso os ingredientes essenciais para a criação de “fake news” são a sua propensão para se tornarem virais, numa corrida para o maior número de interações.

Carmén García Herrería, jornalista na área da literacia mediática e estratégia educativa na agência de fact-checking espanhola Maldita, refere que esta rapidez vem da “democratização ao acesso à informação”, mas também do acesso e da criação de desinformação: ninguém nos ensinou a consumir informação na era digital.

Antes, quando consumíamos informação, tínhamos um jornal ou assistíamos e ouvíamos a informação transmitida. Chamávamos de “âncoras”. Agora quando nos enviam um link no WhatsApp ou quando estamos online, não temos essas âncoras que nos dizem “este é um meio”, “esta é uma página da Web que não é um meio” ou “isto é sátira”. “Foram essas âncoras que perdemos e claro, tudo se torna mais rápido.”

Criar – ou copiar- textos e imagens, publicar e partilhar é metade do caminho. A outra metade é feita pelos algoritmos. Através dos chamados “bots” (ou robôs digitais) e softwares de construção de algoritmos que selecionam a informação que é enviada e recebida conforme os gostos, interesses e hábitos digitais de cada utilizador. As “fake news” navegam sem limites formando câmaras de eco para os cidadãos, como afirma Paulo Pena.

Vídeo: Estamos a criar identidades muito vincadas sobre assuntos que nos circundam de uma maneira quase obsessiva”, diz Paulo Pena

Na Europa, o tema das “fake news” e da desinformação tem ganhado cada vez mais importância pelas consequências nefastas e perigosas que cria às sociedades democráticas e consequentemente à capacidade de os cidadãos fazerem as suas escolhas de uma forma informada.

Para Fernando Esteves, fundador do jornal português de “fact-checking” Polígrafo, “o maior sintoma da decadência das democracias é o afastamento entre os políticos e o povo, ou seja, entre as pessoas que são eleitas e quem os elege. E as «fake news» podem fazer com que isso aconteça”.

A política é um dos temas na ordem do dia no que toca a notícias falsas. Do Brexit às afirmações falsas difundidas por políticos (como exemplo, Kyriakos Velopoulos, político nacionalista e figura da televisão na Grécia, que afirmou que os migrantes que chegavam à Europa recebiam cupões grátis para bordéis), a propagação das “fake news” é a realidade que tem feito desacreditar políticos, governos e instituições e feito aumentar a desconfiança dos europeus.

Segundo o Digital News Report Portugal 2020, os portugueses são, entre os europeus, os que manifestam uma maior preocupação relativamente ao que é real e falso na Internet, com 76% dos inquiridos a revelarem preocupação com o que é real e falso na Internet. Em Espanha foram 65% e em França 62%. No final da tabela apresentam-se os holandeses (32%), os eslovacos (35%), os alemães e os dinamarqueses (ambos com 37%).

O panorama acentua-se quando a preocupação com a desinformação surge associada a governos, políticos ou partidos nacionais de cada país. Também de acordo com o Eurobarómetro de abril de 2021, 82% dos europeus consideram a desinformação um problema para a democracia, resultado de um ano repleto de notícias falsas sobre a Covid-19.

Maria Rodrigues, de 22 anos, estudante de Comunicação em Lisboa, partilha a mesma opinião. “No último ano, recebi dezenas de mensagens via WhatsApp com a origem da Covid-19 ou curas milagrosas, mas tentava sempre verificar se aquilo era verdadeiro ou falso. Mas sei que nem todos fazem este tipo de exercício”, frisa. E acrescenta: “O meu avô acredita em tudo o que vê no Facebook. E mesmo mais tarde, quando vê que afinal as notícias ou imagens eram falsas, ele continua a acreditar na primeira versão.”

A desordem que o fake impôs

Rumores, informação falsa e teorias da conspiração não são notícia, mas diariamente o acesso ilimitado a todo o tipo de informação facilita a que conteúdo, de todo o tipo, possa circular na Internet quase sem regras.

“Deepfakes” são um desses exemplos. Por meio da manipulação de imagens e sons, os protagonistas dos vídeos são alterados através de softwares para se expressarem ou agirem de forma diferente da original. Barack Obama, Vladimir Putin ou Kim Jong-un são alguns dos “reféns” destas novas tecnologias, que transformaram a Internet num jogo em busca da perfeição e sofisticação da melhor forma de mentir e enganar.

"Deepfake" com Vladimir Putin

"Deepfake" com Kim Jong-un

O mesmo acontece com os sites de meios de comunicação que têm visto réplicas espalhadas pelo mundo online. As mesmas cores, a mesma organização dos menus e o mesmo tipo de letra. À primeira vista, o mesmo site. A diferença marca-se apenas no conteúdo: um é falso, o outro não. Um difunde a mentira, o outro luta para a combater.

Susana Alves, de 46 anos, é uma das inúmeras pessoas que reconhece a dificuldade em identificar uma “deepfake” ou um site de informação falso, pela complexidade e quase perfeição na sua execução. “Há algum tempo vi um vídeo de um político que considerei que era totalmente verdadeiro. Aliás, nunca pus em questão a probabilidade de a imagem ser falsa ou não. Estranhei apenas o discurso, mas parecia tão real que acabei por acreditar. Mais tarde, vi a circular a informação de que aquele era um vídeo falso. Aí percebi que estamos realmente a confrontar-nos com notícias, imagens e vídeos falsos todos os dias e nem damos conta”, explica Susana.

No sentido de desconstruir o fenómeno das “fake news” e da desinformação, a dupla de investigadores Claire Wardle e Hossein Derakhshan propôs a existência de um novo conceito, em 2017, com o fim de clarificar a complexidade de conteúdo falso existente. É nas sete formas de desinformação, que designaram por “Desordem Informacional”, que Claire e Hossein distinguiram aquilo que é incorreto e fabricado com um objetivo definidamente maldoso do restante que é partilhado e difundido, inconscientemente, com o propósito do entretenimento ou com falta de contexto.

No relatório Information Disorder:Toward an interdisciplinary framework for research and policy making do Council of Europe, os investigadores dividem estas sete formas de desinformação dentro de três grandes tipos: “Dis-information”, ou seja, informações falsas e criadas deliberadamente para prejudicar uma pessoa, grupo social, organização ou país; a “Mis-information”, informações falsas, mas não criadas com a intenção de causar danos; e “Mal-information”, informação com base na realidade, usada para infligir dano a uma pessoa, organização ou país.

Infografia: Exemplos das sete formas de desinformação, segundo Wardle e Derakhshan

Victoria Moreno Gil, investigadora de ética, responsabilidade e literacia dos media e professora na Universidade Nebrija, em Espanha, explica que esta desinformação, de qualquer uma das formas, nasceu sobretudo com “a troca dos papéis tradicionais de «gatekeeper» (conceito jornalístico que define aquele que controla e filtra a informação que é noticiada e acaba por chegar até ao público). A chegada do jornalismo participativo tem mostrado que nem tudo é bom nesta nova realidade, onde qualquer cidadão pode alcançar tantos leitores quanto as grandes manchetes tradicionais, graças ao imediatismo inerente das redes sociais”.

Como o fact-checking ganhou terreno na luta

O primeiro auge das “fake news” aconteceu em 2016 na corrida de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos da América. Mas foi no início da pandemia de Covid-19 que, em todo o mundo, os números de notícias falsas começaram a disparar.

De acordo com as tendências de pesquisa da Google, nos últimos cinco anos a semana de 15 a 21 de março de 2020 (logo após a Organização Mundial da Saúde declarar oficialmente a “pandemia” de Covid-19) foi a que atingiu o pico na procura do termo “fake news” em todo o mundo. O medo, a incerteza e o receio relativamente a um futuro que era indefinido agravava-se com a circulação das notícias inventadas, sem a certeza das fontes científicas.

Gráfico: Pesquisa do termo “fake news” nos últimos cinco anos. Fonte: Google

Vitor Tomé, professor e investigador nas áreas da literacia dos media e do jornalismo, afirma que “a desinformação é um assunto sério porque põe em causa a democracia e há pessoas a morrer por causa da circulação de notícias falsas”.

É também o que confirma o estudo publicado na revista American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, de 2020, que revela que mais de 800 pessoas já morreram devido a desinformação sobre a Covid-19, sobretudo pelos rumores e falsas curas a circular nas redes sociais.

Naturalmente, os números e as tendências que se vão manifestando quebram assim a confiança dos cidadãos nas instituições, políticos e medias competentes, o que tem levado a que ações para combater a desinformação sejam cada vez mais um assunto de destaque nos vários meios.

“Se o fact-checking fosse uma loja de hambúrgueres, o Donald Trump seria o néon à porta, porque foi ele que chamou à atenção para este fenómeno de jornalismo”

Através de políticas públicas, alterações das políticas de redes sociais e da promoção da literacia mediática, a União Europeia tem levado a cabo ações e iniciativas que têm permitido fazer alguns avanços no problema.

Por outro lado, as agências de “fact-checking”, espalhadas um pouco por todo o mundo e em especial na Europa, têm auxiliado os consumidores de informação a saber avaliar, de forma cuidada e crítica, o conteúdo que circula em meios online através da revelação da sua veracidade.

O primeiro site independente do mundo que se dedicou exclusivamente à verificação dos factos, o FactCheck.org, foi fundado em 2003 pelo jornalista Brooks Jackson da CNN. Hoje, depois de um crescimento desmedido dos últimos anos, já há 300 no mundo inteiro de acordo com a Duke Reporter’s Lab. “Se o fact-checking fosse uma loja de hambúrgueres, o Donald Trump seria o néon à porta, porque foi ele que chamou à atenção para este fenómeno de jornalismo”, descreve Fernando Esteves, fundador do jornal Polígrafo.

A verdade é que, só na Europa, o número de agências de “fact-checking” passou de 46 em 2016 para 85 em 2020.

Infografia: Mapa europeu das agências de fact-checking

A The International Fact-Checking Network (IFCN) reúne mais de 90 organizações que se dedicam à verificação dos factos. Jornais e televisões de todo o mundo juntaram-se com um único objetivo: promover uma rede de boas práticas no combate à desinformação através do “fact-checking”.

“Costumo dizer aos meus jornalistas que somos uma espécie de cabo de vassoura que vem no fim para apanhar os destroços que aconteceram durante o dia”

Em Portugal, os jornais Polígrafo e a secção de “fake news” do Observador fazem parte desta rede. Fundado em 2018, o Polígrafo nasce da necessidade de trazer para Portugal um jornal que pudesse “desempenhar um papel importante num tempo em que se iriam realizar várias eleições no país. Era criar um jornal que se preocupasse, acima de tudo, em oxigenar a democracia, escrutinando aquilo que os protagonistas que estão no espaço público vão dizendo ou escrevendo, colocando-lhes exigência e obrigando-os a serem melhores”, explica Fernando Esteves, fundador do jornal.

Com sete escalas de avaliação – do “Verdadeiro” ao “Pimenta na Língua” -, no Polígrafo o reconhecimento detalhado dos factos, desde as fontes à contextualização do tema, exige o tempo que, habitualmente, os jornais diários não possuem. “Sempre decidi, desde o início, que o Polígrafo não está no campeonato dos cliques ou no campeonato da rapidez. Nós queremos ser os últimos a falar sobre os assuntos, porque queremos tratá-los de forma ponderada. Se acontecer alguma coisa, não seremos os primeiros a falar sobre ela. Seremos provavelmente os últimos. Costumo dizer aos meus jornalistas que somos uma espécie de cabo de vassoura que vem no fim para apanhar os destroços que aconteceram durante o dia”, acrescenta Fernando Esteves.

​Em parceria com televisões de referência em Portugal, o Polígrafo e o Observador têm alargado e exibido o trabalho das agências de verificação a novos públicos, facilitando o acesso credível à veracidade das notícias. “Haver espaços de verificação de factos, seja em órgãos de comunicação tradicionais ou online, é e deve ser sempre uma necessidade.”

“Oferecer ao público a verdade parece irónico, mas é primordial para a construção de sociedades bem informadas”, refere Maria Rodrigues, de 22 anos, estudante de Comunicação. O mesmo crê Susana Alves, de 46 anos. “Nos últimos tempos só se fala do tema «fake news». Então passei, claro, a estar mais atenta ao que via na Internet, no Facebook sobretudo. Quando há algo que me parece duvidoso, vejo se no Polígrafo referiram alguma coisa sobre aquele assunto. E agora, com uma mentalidade mais atenta, os meus palpites estão quase sempre certos. Se me parece falso, acabo por descobrir que era realmente falso”, afirma.

O Polígrafo faz a avaliação pormenorizada dos factos, mas quem verifica o Polígrafo? Fernando Esteves assume que “a resposta é dada pelo próprio Polígrafo e pelo nosso trabalho. Um bom texto de fact-checking tem de ser «checkável» por quem está a ler, daí que coloquemos bastantes links nos textos. Nós damos a possibilidade dos nossos leitores fugirem para onde quiserem, porque fazemos questão que as pessoas, à medida que vão lendo o texto, possam verificar aquilo que lá esta. É mau em questão de negócio, porque estão menos tempo no site, mas é esta a natureza do nosso trabalho. Quem nos «polígrafa» é o próprio leitor. Além disso, somos auditados anualmente pela IFCN (International Fact-Checking Network) que todos os anos contrata um perito internacional e independente para analisar o nosso trabalho”.

Vídeo: Conferência TED Talk com Fernando Esteves, novembro 2019

Uma das agências sem fins lucrativos que integra também esta rede é a agência Maldita, em Espanha, fundada em 2018. Carmén García Herrería, jornalista na agência, destaca que na Maldita “o slogan é «Jornalismo para que não o enganem», porque é através da verificação, de jornalismo de dados, de pesquisa em reportório de jornais, de ferramentas tecnológicas e educação que criamos conteúdos que permitem aos cidadãos ter maior segurança sobre o que é real e o que não é. Desenvolvemos formatos inovadores especialmente focados nas redes sociais e na formação de uma comunidade comprometida com o projeto e que colabore connosco”.

Com o ideal “catorze olhos são melhores do que dois”, na Maldita são a viralidade e o perigo social que uma desinformação sustém que marcam a diferença no conteúdo que é selecionado para verificação.

Equipa da agência Maldita, em Espanha

Segundo Vitória Moreno Gil, investigadora, “as principais plataformas de verificação de factos que existem atualmente em Espanha estão profissionalizadas e na sua maioria fazem parte do International Fact-Checking Network (o que, por sua vez, garante padrões de qualidade). Além disso, todos têm uma boa reputação, especialmente a Maldita.es, que se tornou uma referência a nível europeu e praticamente mundial”.

Em Espanha, o “fact-checking” é uma das principais armas no combate às “fake news”, contando já com seis agências de verificação de factos (Maldita.es, Newtral e Verificat são três iniciativas independentes). Focam-se na monitorização de discursos políticos e da transparência de instituições privadas e públicas, com o propósito de reforçar a confiança dos cidadãos espanhóis no governo e políticos, uma vez que quase metade dos espanhóis (49%) lhes atribui a culpa pela desinformação no país (Digital News Report España 2020).

Infografia: Notícias falsas vs verdadeiras em Espanha, segundo o “I Estudio sobre el impacto de las fake news en España”

Também em França o fact-checking ganha importância. É o país europeu com mais agências de verificações de factos, 17, com 15 localizadas na capital francesa, Paris. Numa afiliação com meios de comunicação social tradicionais, a maioria das agências amplia o trabalho de televisões (TF1), rádios (Radio France) e jornais de imprensa (Le Monde). A Agence France Press (AFP) é um dos casos.

Com o objetivo de quebrar a difusão de notícias falsas em França, a AFP criou a sua própria secção de “fact-checking”, alargando-se numa rede líder neste campo desde 2017 por todo o mundo. Fabrice Fries, presidente da AFP explica que “a agência teve de fazer a sua parte na luta contra a desinformação e portanto, em menos de três anos, montou uma equipa de 100 agências de «fact-checking» em tempo integral, que cobrem 50 países e produzem verificações em 23 idiomas até o momento”.

“No entanto, a luta deve ser coletiva, todos têm a sua parte. O «fact-checking» é apenas uma parte da resposta, que já tem mostrado a sua eficácia. A AFP, por exemplo, publicou 2.500 artigos de verificação apenas sobre a pandemia de Covid-19: isso significa que há poucas notícias falsas, de qualquer área, que escapem a este trabalho de verificação”.

Fabrice Fries, presidente da AFP, numa conferência sobre o papel global das agências de notícias na era de notícias falsas. (Foto: Sarah Graham / FCC)

No processo de reconhecimento, Rémi Banet, jornalista e fact-checker na agência AFP em França explica que há “o uso de diferentes métodos e ferramentas para verificar as informações. Quando verificamos fotos e vídeos, por exemplo, realizamos uma procura inversa das imagens, por motores de busca (Google, Yandex) ou com ferramentas como o InVid-WeVerify, que foi co-desenvolvido pela AFP, para encontrar a origem da imagem. Frequentemente, temos que localizar geograficamente as imagens para verificar onde foram tiradas”.

Para além destas ferramentas os jornalistas, de forma individual e independente, reúnem em contas próprias as páginas de redes sociais que fazem a distribuição em massa do falso conteúdo. “Os jornalistas ao serviço da verificação da AFP conduzem a sua própria monitorização: na minha parte, por exemplo, criei uma lista no Twitter de várias centenas de contas que compartilham regularmente informações falsas ou já compartilharam informações falsas. Caso contrário, usamos a ferramenta CrowdTangle para criar listas de grupos do Facebook que compartilham informações falsas”, frisa Rémi.

A verdade é que a verificação de factos se impõe apenas como a ponta do icebergue no mundo da desinformação. “Somos apenas parte da resposta ao problema das notícias falsas. Essa luta também deve envolver a literacia mediática. Nesse sentido, tentamos explicar o máximo aos nossos leitores como verificamos informações falsas (ferramentas, métodos), para que eles próprios possam aprender a verificar as afirmações que veem na internet, por exemplo”, diz o jornalista.

Paulo Pena, jornalista e fundador do Investigate Europe também defende que as agências de “fact checking” não são, por si só, suficientes para resolver o problema.

Vídeo: “O fact-checking, como mecanismo de combate às fake news, tem vários problemas”, argumenta Paulo Pena

No controlo da disseminação de informação falsa, Vitória Moreno Gil acrescenta que, acima de tudo, “a questão não tem tanto a ver com o número de plataformas de verificação de factos, mas sim com a qualidade do seu trabalho. No entanto, tem de ser ter em conta que as organizações de verificação não são por si mesmas a solução para problema de desinformação. É necessário um trabalho conjunto entre governos, académicos, instituições de ensino e meios de comunicação para combater a disseminação de notícias falsas e a sua viralização nas redes sociais e de mensagens instantâneas como o WhatsApp”.

A lei que segura a desinformação

“Se não se conseguir ter um bom antídoto na boa informação, as «fake news» podem acabar por dominar o nosso debate público”, refere o jornalista Paulo Pena. A mesma ideia é partilhada por jornalistas, investigadores e académicos da área, que reconhecem a necessidade de promover o trabalho das instituições públicas e o bloqueio à informação falsa por parte de plataformas como as redes sociais.

Na União Europeia, desde 2015 que o tema da desinformação online tem motivado ações práticas para a proteção dos valores dos sistemas democráticos. Em 2018, foi criado um Grupo de Peritos de Alto Nível para fazer o aconselhamento sobre iniciativas políticas para o combate às “fake news” e à desinformação disseminada em meios online, mas é a criação e promoção de planos, estudos e iniciativas que tem garantido a diferença nos últimos anos.

Uma das iniciativas é o Observatório Europeu dos Media Digitais (EDMO). Miguel Poiares Maduro, ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional de Portugal e presidente atual do EDMO, descreve o trabalho do consórcio.

Vídeo: Miguel Poiares Maduro sobre o trabalho do Observatório Europeu dos Media Digitais

No EDMO estão presentes sete observatórios de investigação espalhados pela Europa, com a criação em breve de um oitavo, o IBERFIER, um observatório ibérico que desenvolverá o trabalho a partir de setembro de 2021.

Vitor Tomé, investigador, é um dos responsáveis do projeto financiado pela Comissão Europeia que se diferenciará “a nível cultural, porque se vai centrar nas línguas portuguesa e castelhana. É importante porque permite a investigação do tema num projeto que se sabe quando começa e não se sabe se acaba”.

Em Portugal, o tema das “fake news“ foi discutido em 2019 quando foi debatido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que sugeriu ao Parlamento Português legislação que pudesse punir quem promove e cria correntes de “fake news”. A verdade é que, em 2021, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou a “Carta de Direitos Humanos na Era Digital”, assegurando o cumprimento em Portugal do “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, em que qualquer cidadão tem o direito de fazer queixa à entidade competente (no caso português, a ERC).

Já a nível legislativo, em França, a Lei da Liberdade de Imprensa consagra o combate à criação e difusão de notícias falsas com multas que podem chegar aos 45.000 euros para os casos que sejam suscetíveis de perturbar a paz pública e 135.000 euros para os casos que sejam suscetíveis de perturbar a disciplina ou a moral das Forças Armadas.

Por outro lado, em Espanha, em março de 2021, foi apresentado um novo plano de combate ao cibercrime, que coloca as “fake news” nas dez principais ameaças uma vez que, de acordo com o Digital News Report Espanha 2020, 65% dos entrevistados espanhóis afirmam que se preocupam por não saber distinguir o que é verdadeiro do que é falso na Internet.

Segundo o jornal El País, um documento disponibilizado em março de 2021 pelo Ministério do Interior, enfatiza que a desinformação ganhou “importância especial nos últimos tempos como um meio de minar a confiança nas instituições do Estado, uma ameaça que impede o avanço de Espanha e da Europa. Nesse sentido, o novo plano de combate ao cibercrime alerta para a possível utilização de inteligência artificial”.

Cerimónia de apresentação da iniciativa de apoio à leitura “PSuperior”, promovida pelo Jornal Público, novembro 2019 (Foto: Miguel Figueiredo Lopes/ Presidência da República)

Para além do que tem sido feito ao nível da legislação também as redes sociais e plataformas da Internet têm, com o apoio de instituições e da União Europeia, desenvolvido guias para combater as “fake news”.

O Código de Conduta da Comissão Europeia, apresentado em 2018 como forma de monitorização e transparência nas práticas contra a desinformação, engloba um acordo com as plataformas online Facebook, Google, Twitter e Mozilla. Também se aliaram anunciantes e partes da indústria de publicidade, em outubro de 2018, para a implementação de ações que impedissem a circulação de notícias falsas nas suas plataformas (como o bloqueio de contas falsas ou o controlo de propaganda política). Miguel Poiares Maduro refere que “a adesão das plataformas é voluntária, mas há uma série de compromissos que têm de assumir. Ao nível da transparência, tornar transparente as fontes de onde vem a informação ou se até se o conteúdo se trata de propaganda política”.

Em maio de 2019, a Microsoft juntou-se ao plano, tal como a rede social TikTok, em junho de 2020. A Google, por sua vez, tem vindo a trabalhar há vários anos com o objetivo de reduzir o número de “fake news” nos resultados de pesquisa. A revisão dos algoritmos e a contextualização da informação através de fontes reconhecidas são algumas dessas medidas, que ganharam ainda mais destaque em 2021, quando a gigante da Internet anunciou o investimento de 25 milhões de euros para o novo Fundo Europeu para os Media e Informação criado pela Fundação Gulbenkian e o Instituto Universitário de Florença. Este projeto visa, acima de tudo, controlar a desinformação e impulsionar projetos de literacia mediática e de verificação de factos.

Por outro lado, o Twitter, já conhecido por bloquear, suspender ou apagar os tweets de Donald Trump (em janeiro deste ano a sua conta foi eliminada), introduziu um novo sistema de verificação de dados em 2020, que permitiu à plataforma sinalizar os tweets como conteúdo enganoso.

O Facebook adotou a mesma prática, com o aviso sobre a falsidade do conteúdo. Nas contas da rede social em alguns países da Europa está também disponível um “botão do contexto” que apela ao ao sentido crítico dos utilizadores sobre a credibilidade de um artigo. Clicando nesse botão, são reveladas a fonte e outras informações úteis para entender a origem da publicação.

Apesar dos esforços contínuos das plataformas nos últimos anos, o controlo por parte das redes sociais aumentou sobretudo durante a infodemia da Covid-19 (termo utilizado pela Organização Mundial da Saúde para descrever a “pandemia” de informação falsa que circulava sobre o novo coronavírus), levando o próprio Facebook a avisar os utilizadores se tiveram contacto com “fake news” sobre a pandemia.

Literacia mediática: a melhor solução?

Apesar dos esforços das políticas públicas e redes sociais, a possível – e melhor – solução a longo prazo, segundo jornalistas e investigadores, passa por investir em educação para os media, a chamada “literacia mediática”.

A literacia mediática, enquanto capacidade de compreensão e conhecimento das mensagens dos medias, nas suas inúmeras formas, é considerada uma das vias mais eficazes no combate à desinformação. Fomenta a formação de um pensamento crítico dos cidadãos em relação àquilo que circula em ambientes digitais. O investigador Vitor Tomé explica o conceito.

Vídeo: Vitor Tomé sobre o conceito de literacia mediática

No relatório “A Multi-Dimensional Approach To Disinformation- Report Of The Independent High Level Group On Fake News And Online Disinformation”, produzido em 2018 para a Comissão Europeia, a literacia é considerada um dos grandes pilares em que assenta a abordagem multidimensional da problemática da desinformação.

Na Europa, promover a capacidade de discernir o que é verdadeiro e falso, através da literacia, tem manifestado grandes diferenças entre países. Quem o refere é José Ignacio Aguaded Gomez, professor e diretor da rede AlfaMed, uma rede interuniversitária euroamericana de investigação sobre competências mediáticas para a cidadania.

Áudio: José Ignacio Aguaded Gomez sobre a diferença do grau de literacia nos países europeus

De facto, o que confirma as diferenças no nível da literacia mediática é o relatório Media Literacy Index de março de 2021, da Open Society Institute – Sofia. Este documento utiliza indicadores como o nível de educação, a liberdade de informação, o estado dos media, a confiança na sociedade e o uso de ferramentas de participação cívica para definir os vários níveis de literacia mediática. O relatório faz ainda agrupamentos de países que apresentam práticas similares.

Gráfico: Níveis de literacia mediática na Europa, segundo o relatório Media Literacy Index de março de 2021

A justificação sobre o que marca a diferença entre os vários países do continente europeu relativamente ao nível de literacia mediática passa por vários fatores. Quem o explica é o investigador da área Vítor Tomé.

Vídeo: “Quanto mais conhecimento académico as pessoas têm, mais consomem media e mais percebem acerca desse consumo”, resume Vítor Tomé

Na União Europeia, é o programa Audiovisual Media Services Directive (AVMSD) que tem reforçado o papel da importância da literacia dos media nos estados-membros, que, individualmente, também elaboram estratégias para promover esta educação.

Comissão Europeia apresenta Plano de Ação para combater a desinformação. Dezembro de 2018

No caso de França, a preocupação em preparar a sociedade para a literacia mediática é um dos maiores desafios. A promoção da literacia mediática no país tem o foco essencialmente nos jovens e nas crianças, que apesar de não terem a obrigatoriedade da disciplina de Educação para os Media nas escolas têm professores que fazem facultativamente esse trabalho.

O Centro de Educação para a Media e a Informação (CLEMI), criado pelo Ministério da Educação francês em 1983, é um dos responsáveis pela educação para os media e a informação em todo o sistema educacional francês. Tem como missão promover a compreensão e sentido crítico dos jovens no que diz respeito ao uso dos media, em várias cidades de França.

“(Em Portugal) o nível do qual partimos é um nível muito baixo, porque há no país um contexto quase único na Europa. Tivemos uma ditadura quase meio século que deixou todas as literacias muito baixas. A literacia mediática também.”

Lado a lado com a vertente educacional, há várias outras instituições independentes que tentam travar a propagação de desinformação e tentam preparar a sociedade para a literacia mediática. Um desses exemplos é o observatório francês “De Facto”, financiado pela Comissão Europeia e pertencente ao Observatório Europeu dos Media Digitais.

Já em Espanha, Victoria Moreno Gil alerta que “há poucos motivos para se ser otimista, embora haja certas iniciativas muito interessantes que permanecem ativas, essencialmente na Catalunha (a comunidade autónoma pioneira em Espanha em termos de educação para os media), que deixam um raio de esperança”.

Para o fundador da rede AlfaMed, José Ignácio Aguaded Gomez, são as investigações sobre o tema que podem ajudar a solucionar o problema da desinformação.

Áudio: José Ignacio Aguaded Gomez sobre o papel das investigações na luta contra a desinformação

Já para o presidente do Observatório Europeu dos Media Digitais, Miguel Poiares Maduro, a resposta poderá vir sobretudo das plataformas.

Vídeo: “Eu acho que os algoritmos deviam ser mais responsabilizados”, defende Miguel Poiares Maduro

Em Portugal, a literacia mediática tem sido cada vez mais um assunto em cima da mesa, mas “o nível do qual partimos é um nível muito baixo, porque há no país um contexto quase único na Europa. Tivemos uma ditadura quase meio século que deixou todas as literacias muito baixas. A literacia mediática também”, refere o investigador Paulo Pena.

Centros de investigação, como o MILOBs- Observatório sobre Média, Informação e Literacia ou o Piccle- Plano de Intervenção Cidadãos Competentes em Leitura e Escrita e ações de jornais como o Público (o jornal lançou um projeto que pretende promover a literacia mediática nos jovens, o PSuperior), têm “posicionado Portugal num bom nível”.

Em comparação com alguns países da Europa, estamos num nível avançado”, diz Vitor Tomé. Contudo, o investigador sublinha que “a literacia dos media é muito mais que combater a desinformação”. Neste momento, a solução mais viável é, segundo os especialistas da área da literacia, a formação que é dada a crianças e jovens feita por professores e educadores nas escolas, tal como refere José Ignácio Aguaded.

Áudio: “É importante começar a literacia mediática nas crianças mais pequenas”, sublinha José Ignácio Aguaded

Mas para combater a desinformação é necessário que o mal seja, desde logo, controlado pela sua raíz. Além de revisões sobre as práticas das plataformas, como permitir uma conta associada a um email por cada utilizador, por exemplo, no Facebook, Paulo Pena alerta que “este é o melhor momento para o jornalismo se repensar, porque a boa informação é e será sempre a que combate a má informação”.

Instituições, plataformas, governos, jornalistas, cidadãos: todos têm um papel para controlar o desenrolar desta (falsa) história, porque para evitar a contaminação da “doença do século”, é necessário vacinar-se com a (verdadeira) informação.

Imagem de capa: Centro Multimédia do Parlamento Europeu
Artigo editado por João Santos Duarte