Querem dar voz às comunidades, mas isso revela-se cada vez mais difícil, num meio marginalizado, afastado dos grandes centros de decisão. Estes jornais regionais cultivam uma identidade presente nas famílias, ruas e vilas, mas a valorização do interior ainda não chegou à imprensa.

Por entre toda a impessoalidade das notícias publicadas nos grandes jornais nacionais, que abrangem tudo e todos, surge um espaço e uma necessidade de cultivar aquilo que compreende apenas as localidades do interior. O que alimenta os diretores e jornalistas locais é um encanto pela sua região. Apesar das dificuldades acrescidas no meio, ir para fora nunca foi opção. De forma a conhecer melhor o plano da imprensa do interior português, falámos com quatro jornais, de Norte a Sul do país: em Trás-os-Montes, o Diário de Trás-os-Montes; na região do Alto-Tâmega, o Notícias de Aguiar; na Beira-Baixa, em Castelo Branco, a Gazeta do Interior; e, mais a sul, no Alentejo, ODigital.pt.

“Do Alentejo para o mundo.” Assim dita o mote do jornal exclusivamente digital criado por Hugo Calado, ODigital.pt, fundado em 2018. Hugo sempre gostou de informar e, de preferência, “ser o primeiro a fazê-lo” e acredita que o Alentejo também precisa de uma voz, de ter alguém que o projete para o resto do mundo. ODigital.pt cobre todo o Alentejo, dos assuntos desportivos aos económicos e culturais. “Pode parecer que no Alentejo e no interior não se faz nada, mas não. Faz-se muita coisa no dia-a-dia. Há muita reportagem, há muita coisa que se faz no Alentejo”, explica.

Hugo decidiu ser único diretor e jornalista d’ Odigital.pt, porque seria “um risco muito grande começar um órgão de comunicação com muitos jornalistas”.

Apaixonado por fotografia, Hugo faz tudo pelo e para o seu jornal. É o único a trabalhar para Odigital.pt, assumindo as funções de diretor, jornalista e fotógrafo. No entanto, garante que esta multiplicidade de tarefas se vai “conjugando”.

Antes de criar o seu próprio jornal, trabalhou durante 13 anos numa rádio local, em Vila Viçosa. Recorda que ao fim desse tempo a sua ideia inicial era fazer “uma pausa na informação”, pois as notícias chegavam todos os dias incessantemente. “Queria fazer uma pausa precisamente por causa disso. Treze anos de um lado para o outro e no Alentejo há essa situação em que é preciso andar sempre pelo menos 50, 30, ou 20 quilómetros para chegar à notícia”, esclarece.

No entanto, a paixão sobrepôs-se à fadiga. “Queria fazer uma pausa na informação, mas estava aqui e pensava para mim: Há aqui esta notícia e ninguém pega nela? Até que disse: bom, vamos lá lançar um órgão de comunicação e dar estas notícias”, explica. “O Alentejo precisa urgentemente de pessoas e de órgãos de comunicação que o façam chegar a outras partes do país e do mundo. O interior do país precisa urgentemente disso.”

“Pode parecer que no Alentejo e no interior não se faz nada, mas não. Faz-se muita coisa no dia-a-dia.”

Tal como Hugo Calado, António Tavares é jornalista num meio de comunicação social local: a Gazeta do Interior, de Castelo Branco. Pertencem a gerações diferentes, Hugo tem apenas 33 anos e António já trabalha naquele jornal há 31. “Decidi ficar no interior, porque é a minha região”, explica. Para António, as exigências de um jornalista do interior são as mesmas que em qualquer outro sítio: “disponibilidade, mente aberta, estar sempre disponível para enfrentar barreiras, porque nem sempre é fácil chegar às notícias. Há que saber vencer essas barreiras”.

António Tavares: “Disponibilidade, mente aberta, estar sempre disponível para enfrentar barreiras, porque nem sempre é fácil chegar às notícias. Há que saber vencer essas barreiras. Mas é como em qualquer outro sítio.”

Nas bancas à quarta-feira, a Gazeta do Interior foi fundada em 1988 e abrange todo o distrito de Castelo Branco. Atualmente conta com vários colaboradores, mas António garante que é o único jornalista a tempo-inteiro. É um jornal maioritariamente noticioso, que até permite aos leitores enviar as suas notícias.

Sempre claro e direto ao assunto, acrescenta: “em regra geral, os dias são sempre muito preenchidos e não há nenhum dia igual ao outro”. António e Hugo pintam um quadro completamente antagónico daquilo que é muitas vezes falado sobre a imprensa regional. António até conta que já foi a Bruxelas e a Estrasburgo, como correspondente da Gazeta do Interior.

Unir os locais em qualquer parte do mundo

“Os jornais, na essência, são meios que congregam comunidades, são identificativos de um território”, introduz Filipe Ribeiro, diretor do Notícias de Aguiar, o diário de Vila Pouca de Aguiar, fundado em 2014. É natural da região e destaca que, para os locais, o que acontece à sua porta é mais importante do que o que acontece na capital, seja algo relacionado com o vizinho, com a câmara municipal ou com o café da esquina.

Os jovens são forçados a viver e trabalhar nos grandes centros e, por vezes, até os mais velhos têm de emigrar. Constroem as suas vidas noutro lugar, deixando as aldeias e vilas para trás. Há quem resista ao despovoamento que assombra estas comunidades, mas muitos são forçados a deixar para trás a sua terra. Esta crise veio acentuar a necessidade de preservar a identidade das localidades do interior que, muitas vezes, é a única coisa que fica.

O Notícias de Aguiar sai todas as terças-feiras, com notícias e reportagens que abarcam não só a vila onde está sediado, como também toda a região do Alto-Tâmega, que a rodeia. Tem também um canal no YouTube.

“Estás a perceber?”, “Ok?”, perguntas que saem a Filipe em modo automático, como se a questão da identidade regional fosse demasiado complexa, para alguém que é de fora: “Assim como a seleção nacional contribui para a união, para nos identificarmos com uma bandeira, com uma marca, o jornal também permite isso: as pessoas identificam-se em termos de comunidade. Com os jornais passa a existir um ponto de ligação”, esclarece.

Filipe Ribeiro, Diretor do Notícias de Aguiar

Também no Norte, em Trás-os-Montes, existe uma ideia de identidade comum, bem presente na região. O Diário de Trás-os-Montes, criado em 1999, é um dos jornais transmontanos mais prestigiados. Possui apenas suporte digital e conta atualmente com 5 colaboradores. António Pereira, natural da região, ocupa o cargo de diretor há 20 anos, mas, oficialmente, apenas há cinco: “o jornal existia; no entanto, não era um projeto jornalístico a sério”, conta. Atualmente, é um jornal de publicidade diária, “sério, muito rigoroso”, cobiçado por muitos jornalistas. “Temos dificuldade em responder a todos os jornalistas para lhes dizer que não podemos meter mais.”

António Pereira ocupa o cargo de diretor do Diário de Trás-os-Montes há 20 anos

Os jornais, que acabam nos quiosques, escolas, cafés e comércio local, vão carregados de notícias e com um sentimento de pertença. António, com o jornal, tem um objetivo bem definido: “unir todos os transmontanos, pois partilhamos todos o mesmo espaço e a mesma identidade”. O diretor do Diário de Trás-os-Montes reforça que o público-alvo não é o “pessoal de Lisboa e do Porto”, e que, na redação, todos querem que as notícias sejam lidas “por transmontanos, mesmo que estejam em Lisboa. Os outros também podem ler, mas já não se identificam”. De Bragança, a Vila Real, o Diário de Trás-os-Montes noticia o que se passa em toda a região.

Este sentimento de pertença vai muito para além das localidades. Na verdade, ultrapassa fronteiras. Aqueles que emigram podem confiar nos jornais regionais para espreitar um pouco da terra-natal lá fora. “Há uma forte presença de comunidades no estrangeiro que são naturais daqui. Quando estás lá fora vives muito mais tudo aquilo que te liga ao país, à região, ao concelho, à rua”, explica Filipe Ribeiro.

“Se não fosse o jornal, se não existisse um órgão de comunicação local, independentemente, elas não teriam contacto nenhum com o que acontece nas comunidades de onde são naturais”. Filipe revela que tem recebido muitas mensagens de emigrantes, naturais de Vila Pouca de Aguiar, a pedir notícias e novidades sobre a pandemia da covid-19 no concelho. “A televisão nacional e internacional não vai dizer quantos casos existem em Vila Pouca de Aguiar, só lhes interessa quando acontece uma tragédia, ou quando vem cá alguém famoso”, confidencia.

Muitas vezes, é com esta televisão nacional que os órgãos de comunicação do interior têm de competir, especialmente perante uma situação altamente mediática, como uma visita presidencial. Saem sempre a perder.

Visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Bragança, em Julho de 2016. As câmaras e microfones dos grandes órgãos de comunicação ocultam a cara do presidente. Foto: Diário de Trás-os-Montes:

Hugo Calado explica que, numa situação destas, as televisões conseguem sempre sobrepor-se aos pequenos jornais. “Não há qualquer hipótese”, confessa. “Fazem perguntas que nada interessam para os locais, perguntas incómodas, e depois as figuras públicas não respondem aos meios de comunicação regionais.”

Uma comunidade sem informação é uma comunidade às escuras. Estes jornais são responsáveis por um efeito agregador, as notícias publicadas sofrem uma metamorfose. Deixam de ser apenas notícias, passam a ser a marca de uma identidade – o aniversário de uma banda filarmónica, o cantar dos reis, a estória de um habitante. São muito mais do que informação, são celebração.

Vídeo: reportagem do Notícias de Aguiar sobre um dos últimos alfaiates de Vila Pouca de Aguiar.

Tudo isto, identidade, sentido de pertença, celebração, é esquecido. Os jornalistas e diretores destes órgãos não se sentem devidamente reconhecidos. É o retrato de um interior afastado do plano nacional. Isolado, não tem voz.

“Quanto mais distante estás dos centros de decisão, mais te sentes abandonado. Estes territórios estão todos abandonados. Sentimo-nos afastados do poder”, lamenta Filipe Ribeiro. “Não conseguimos ter peso, ter representatividade. Somos pequenos jornais com poucas pessoas, com poucos recursos.”

Sobreviver

Para estes jornais, o maior dissabor é a deficiente distribuição de publicidade estatal, que dificulta a sua sobrevivência. A lei nº 95/2015, de 17 de agosto não deixa esquecer os jornais do interior, ditando uma percentagem de publicidade institucional reservada para os meios locais; contudo, de acordo com estes jornalistas e diretores, o próprio estado esquece-se da lei.

Para além de diretor do Notícias de Aguiar, Filipe Ribeiro também é sócio fundador da Associação Nacional de Imprensa Regional (ANIR), que reúne vários jornais locais que “sentiram a necessidade de uma organização que pugne por soluções que contribuam para a sua manutenção e crescimento”. Uma das principais reivindicações é precisamente o cumprimento desta lei publicitária.

“Nós na ANIR só queremos que cumpram a lei. Se cumprissem, para nós já era um grande avanço”, contesta Filipe. Mostra-se revoltado, indignado, faz várias perguntas: “Achas que somos nós que recebemos publicidade? Não se cumpre o que está na lei. Sabes quanto é que recebemos nos dois últimos anos? Em 2019, zero. Em 2020, zero.”

“sABES QUANTO É QUE RECEBEMOS NOS DOIS ÚLTIMOS ANOS? Em 2019, zERO. EM 2020, ZERO.”

Estes jornais sobrevivem com a publicidade dos cafés, da loja de roupa, da loja de artigos de caça. Pequenos negócios, que nunca estão livres de lutar pela sua própria sobrevivência. Ao falar de publicidade, António Pereira, de Trás-os-Montes, entoa a sua voz sinalizando um desabafo: “É preciso receber das publicidades, nem sempre pagam. E nem sempre as empresas querem fazer publicidade”.

No interior, as estratégias de marketing são diferentes. “A nossa publicidade não é o dinheiro de empresas que precisam de se destacar na concorrência. A nossa publicidade é o dinheiro que as empresas têm um bocadinho a mais e podem despender.”

Há um ano, o governo anunciou um pacote de ajuda para os meios de comunicação, em forma de publicidade institucional, no valor de 15 milhões de euros. Hugo revela que, enquanto as “grandes televisões receberam 1 milhão, 2 milhões”, o valor disponibilizado para os órgãos de comunicação online, tal como ODigital.pt, “nem chegou a 5000 euros”.

Estes jornais são um símbolo de paixão pela região. São uma luta contra a impessoalidade. São um elemento agregador. O interior não para e os jornais também não. Dentro das comunidades, estas notícias são pontos de ligação, são motivo de conversa. Dão voz às comunidades do interior e, por isso, são poderosos, mas o seu peso não é devidamente reconhecido.

O dinheiro da publicidade estatal nunca chega. O dinheiro da publicidade local não chega. “Temos dificuldade em pagar aos funcionários”. E, em tempos difíceis de pandemia, o problema agrava-se: “se isto continuar durante muito tempo, há muitos jornais que vão à falência”, sinaliza António Pereira, do Diário de Trás-os-Montes.