Há uns anos, as tatuagens e piercings eram considerados por muitos sinais de rebeldia, hoje são vistos como mais um adereço do corpo. As histórias de Kevin Viana e Ana Matias revelam que a paixão por este estilo de vida pode, no entanto, transformar-se num círculo vicioso, difícil de controlar.

Kevin Viana, 24 anos, estudante de engenharia civil, iniciou-se no mundo das tatuagens com apenas 16 anos, após a traição da ex-namorada que não lhe permitia tatuar-se. Da primeira até às 53 que entretanto já tatuou no corpo foi uma questão de oito anos. Já Ana Matias, designer de produto, de 27 anos, vê nos seus 18 piercings nas orelhas a sua grande paixão, à qual se rendeu após superar o medo das agulhas na adolescência. Em comum, estes dois jovens olham para as suas adições como uma sensação libertadora e catártica e fazem da pele a sua galeria de arte pessoal.

Fotografias: os 18 furos nas orelhas de Ana Matias

Quando é que se tornou mais do que um simples gosto? “Às tantas, estava a falar com uma amiga que precisava de fazer mais um furo e eu fui com ela fazer mais dois e, na semana a seguir fui fazer outro”, conta Ana Matias. A partir daí, “foi um bocado o descalabro”, acrescenta. O ponto de viragem deu-se quando começou a dar significados aos seus piercings, “para marcar momentos bons e momentos maus”.

Kevin associa cada uma das suas tatuagens a uma superação. “Eu tenho 53 tatuagens, são 53 superações”. Antes de começar a tatuar-se sofria de anorexia, o que o levou a ter de ganhar algum peso para se poder entregar às tatuagens. Todo este processo não deixou a sua autoestima indiferente e acabou por investir nesta prática, após reparar na sua “evolução no espelho”.

O simbolismo está presente em cada intervenção. Kevin exibe, orgulhosamente, no braço uma tatuagem com rosas, a primeira que fez. O seu significado emociona-o. “As rosas representam a minha bisavó, a minha avó e a minha mãe”. Depois da traição da namorada, “só existe amor de mãe” diz Kevin.

Ana descreve a importância de alguns dos seus piercings. Além do primeiro, situado na concha da orelha, e que considera o mais especial, relaciona outros a datas importantes: a inscrição na escola de condução ou as viagens que fez a Londres e Amesterdão.

Os dois jovens admitem o perfecionismo. Ana conta que as suas viagens a Londres e Amsterdão foram um importante marco na relação com os piercings, porque se dedicou afincadamente à escolha da loja e da peça de joalharia. “Costumo dizer que, se eu alguma vez ficar endividada, vou penhorar as minhas orelhas porque isto vale um dinheirão”, diz de forma irónica.

Kevin é exigente na hora de fazer uma tatuagem. “Sou um cliente muito chato, porque eu vejo sempre os erros”. Afinal de contas, a sua pele é o seu “cartão postal” e não admite erros ou falhas nas suas tatuagens.

Ainda assim, a perfeição destes trabalhos não impede a demonstração de preconceito por parte dos outros. Se para Ana os piercings nunca lhe trouxeram complicações por serem relativamente discretos e por trabalhar “numa área criativa” como o design, a situação não se repete com Kevin. Muitas vezes é olhado de lado na rua, assumindo-se à partida que é uma pessoa mal encarada ou um “bandido” e não tem dúvidas de que são os idosos que mais alimentam o preconceito relativamente às tatuagens. Na área profissional, o caminho de Kevin é também repleto de curvas e contracurvas. As tatuagens nas mãos já representaram um obstáculo, por exemplo, quando foi reprovado na entrevista de emprego que lhe permitiria um trabalho num consultório jurídico.

Mas a discriminação não fica por aqui. No que toca à família, Ana admite que a mãe não nutre especial admiração pelos seus piercings, ao contrário dos amigos. No entanto, quando confrontada com o resultado final, a mãe de Ana acaba por aprovar, dado que o choque visual não é tão grande, fruto das peças discretas escolhidas pela filha. Kevin não tem a mesma sorte. O avô está envolvido na vida política e, por recear que a sua imagem seja manchada, exige ao neto que tape as tatuagens quando o visita. “Ele olha para mim e diz «Eu carreguei-te nos braços e olha o que fizeste». Olha com cara de desgosto para mim. É triste, mas eu entendo.”

Um negócio com arte

Marta Bala, tatuadora há oito anos e formada em Design, defende que as tatuagens permitem “mostrar um pouco mais de nós, da nossa história, dos nossos gostos e da nossa cultura”. Não se limita a ser tatuadora, como também preenche o seu próprio corpo com esta arte. É uma forma de marcar lembranças, bem como sítios, pessoas ou palavras com um significado especial. “A minha pele é a história de quem sou e não podia deixar passar em branco, é um livro que vamos completando”, sublinha.

Marta Bala vê nas tatuagens uma forma de expressão dos gostos de cada um

Mariza Seita, tatuadora da Ink and Wheels, reconhecida loja de tatuagens e piercings na freguesia do Areeiro, em Lisboa, vai mais longe: defende que quem se tatua se inclui “na categoria de colecionadores de arte”.

Muitas vezes, associam-se os piercings e tatuagens aos mais novos, mas estas práticas também são adotadas por um leque de idades mais amplo. A faixa etária dos clientes de Marta Bala situa-se entre os 25 e os 45 anos. A loja que Mariza Seita representa tem um público alvo bastante semelhante, entre os 18 e os 40 anos, cuja tendência é a de se alargar. “Já tivemos alguns clientes entre 50 e 80 anos”, confirma Mariza. Há outra tendência evidente, as mulheres são em maior número. O regresso frequente dos clientes a lojas de tatuagens e piercings prova o efeito aditivo e a crescente procura por esta área, tal como constatam as tatuadoras, em particular devido ao simbolismo. Cerca de 85% dos pedidos têm uma história: “faz mais sentido marcar algo para o qual se vai querer olhar e recordar”. São as tatuagens com simbolismos relativos à família que mais sensibilizam estas profissionais.

Mariza Seita argumenta que quem se tatua coleciona arte

Também Marta Bala já foi vítima de preconceito no seu dia a dia e relembra uma das situações que mais a marcaram. “Fui a um restaurante mais caro e acharam que não tinha dinheiro para pagar a conta”.

Vício, obsessão, gosto: de muitas formas se pode descrever esta prática, mas para Kevin é uma terapia: “Eu acordo um dia triste, olho para uma tatuagem, lembro daquilo que eu superei e fico feliz”. “Há gente que vai para a droga, eu vou fazer furos”, comenta Ana, entre risos.

Embora já acumulem muitas tatuagens e piercings no corpo, Ana e Kevin não querem ficar por aqui. Apenas problemas de saúde poderão travá-los. A apaixonada por piercings revela estar a planear a sua primeira tatuagem, ao passo que o colecionador de tatuagens exibe com orgulho um piercing no nariz.