Os vícios mais comuns nos jovens são o álcool, as drogas e a Internet, mas nesta reportagem falamos de adições relacionadas com a alimentação, as compras e os estudos. Teresa, Beatriz e Soraia, três jovens universitárias, viveram períodos conturbados e hoje dão testemunhos de superação.

Lembranças de uma ex-anoréxica

Em Portugal, de acordo com o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependência (SICAD), os vícios mais comuns nos jovens são o álcool, as drogas e a Internet.

“Olha à tua volta e vê como é que as tuas ações estão a prejudicar as pessoas que tu mais gostas.”

O desejo de ter um estilo de vida mais saudável e até mesmo o sonho de se chegar ao corpo ideal têm sido uma tendência crescente em Portugal e na Europa. As redes sociais perpetuam estas expectativas, particularmente nas camadas mais jovens.

Teresa, nome fictício, tem 21 anos, vive em Santarém e começou por querer tornar a sua alimentação mais saudável, devido ao consumo excessivo de açúcar e batatas fritas, o que acabou por não correr bem. A jovem conta que foi há sete anos que a alimentação se tornou uma adição na sua vida. Aos 14 anos começou a alterar a alimentação e a adotar um rígido regime de exercício físico. Teresa revela que sentiu que a obsessão com o peso começou a fugir do controlo porque “assim que atingia um objetivo, estabelecia um novo, um peso mais baixo”.

Apesar de reconhecer que algo não estava bem, lembra-se de sentir que não podia perder o controlo do que comia e do que pesava. A rotina diária passou a ser feita à volta dessa realidade, pelo que não fazia refeições equilibradas. Teresa confessa que o vício veio da necessidade de mudar algo na aparência física. Tinha falta de autoestima e também admitiu que a separação dos pais esteve na origem da anorexia. “Eles não comunicavam e eu era o mediador, essa realidade consumiu-me muito e a forma de ter um pouco mais de controlo da minha vida era controlar aquilo que eu comia”.

Doces eram um dos alimentos que Teresa mais evitava

Na sua família existiam pessoas que não reconheciam o problema e achavam que Teresa estava apenas a fazer dieta. No entanto, tratava-se de um distúrbio alimentar. “Comia duas maçãs e para mim bastava”, admitiu. A mãe ao observar a reduzida quantidade de comida que ingeria foi a que mais cedo se apercebeu do problema e também aquela que sempre esteve presente para a ajudar. Teresa confessa que o mais importante foi a mãe ter reconhecido que estava com um problema e que “não se tratava apenas de uma mania, porque quando não se reconhece que uma pessoa está doente, não se acha que essa pessoa precisa de ajuda. Pensa-se que está só a exagerar quando tem crises ou um breakdown”. Teresa tem agora consciência de que não estava bem e reconhece que se encontrava doente e desequilibrada nessa altura, mas também afirma que o facto de ter a doença legitimada pela mãe fez com que se sentisse melhor.

Quando já estava numa fase de recuperação, em que já se notavam melhorias em relação ao seu peso, Teresa começou a desenvolver problemas psicológicos, como depressão e pensamentos suicidas. “Imagino que para um pai ou para uma mãe seja das coisas mais difíceis de ultrapassar”, reflete. Apesar de ser uma fase delicada, a mãe mostrou-se sempre muito capaz para apoiar a filha e conseguiu manter o equilíbrio emocional. A jovem revelou três episódios de crise em que a mãe a levou às urgências por ter apresentado pensamentos suicidas.

Linhas de Apoio e de Prevenção do Suicídio em Portugal

SOS Voz Amiga
Lisboa
Das 16h às 24h
213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660
Linha Verde gratuita – 800 209 899
(Entre as 21h e as 24h)
Conversa Amiga
Inatel
Das 15h às 22h
808 237 327
210 027 159
Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Voades-Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto – Desde 1982
Das 16h às 23h
228 323 535

Voz de Apoio
Porto
Das 21h às 24h
225 506 070

Todas estas linhas são de duplo anonimato — garantido tanto a quem liga como a quem atende. Para encaminhamento, a linha do SNS24 (808 24 24 24) é assumida por profissionais de saúde.

Foi apenas na fase de recuperação que o pai de Teresa reconheceu que a jovem tinha um problema. Antes disso Teresa diz que o pai não compreendia a situação que estava a atravessar e quis uma prova médica. Mesmo com a prova continuava a não acreditar e a descredibilizar a situação. Depois de regressar do Brasil, onde esteve com o pai, a jovem decidiu lutar contra o vício. Enquanto esteve no outro lado do oceano, Teresa teve total controlo sobre o que comia, o que a levou a pesar 37kg, num estado de anorexia pura. Atualmente o peso da jovem ronda os 50kg. Quando regressou a Portugal, a mãe começou a chorar ao ver a condição física da filha e esse foi o ponto de viragem. “Nesse momento entendi que estava a magoar os outros numa escala muito grande. Foi isso que me fez parar e dizer basta”, referiu. Depois disso, a mãe de Teresa marcou uma consulta no Hospital Santa Maria, em Lisboa, e foi a partir daí que começou o tratamento, tanto ao nível físico, como psicológico.

No que diz respeito às ajudas sobre a saúde mental e física que existem em Portugal, o apoio recai sobretudo no Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde existem psiquiatras especializados em distúrbios alimentares. Ao contrário de outros países, em Portugal ainda não existem clínicas privadas de reabilitação para distúrbios alimentares. Em casos mais graves, em que a perda de peso é maior, quando o doente não se esforça por ganhar peso, ou quando o doente já desenvolveu problemas físicos, por exemplo cardíacos, os pacientes podem ser internados.

Neste sentido, Teresa revela que beneficiou não só da ajuda de um psiquiatra, como também de um dietista. A mãe esteve sempre muito disponível e atenta para a ajudar em tudo o que precisava. Acompanhou-a sempre para todas as consultas, demonstrando ter também uma grande capacidade emocional para a ajudar, mesmo nas situações mais difíceis. “Lembro-me de dizer à minha mãe que não gostava das minhas pernas por serem gordas, mas ela não reagia mal”, conta Teresa, revelando que a mãe abordava as questões com calma e fazia com que ela sentisse que havia alguém que entendia o que estava a viver. A jovem admite que isso foi muito importante para o processo.

Teresa chegou a pesar 37 quilos

Para além disso, Teresa conta que mãe tinha algumas dificuldades financeiras, já que estava desempregada. No entanto, isto não a impedia de satisfazer alguns pedidos que deixavam a filha muito feliz. “Lembro-me de ir às compras com a minha mãe, de ver um ursinho de peluche e dizer ‘tão fofo’. Um dia a minha mãe aparece-me com ele em casa. Fiquei muito tocada com isso, simplesmente pelo gesto e por me querer trazer um pouco mais de conforto”.

Relativamente às relações sociais, o vício veio gerar algum distanciamento. Um encontro com os amigos está quase sempre associado a um jantar ou a um lanche e isso estava fora de questão para a jovem. “Eu não sentia que as relações eram as mesmas, são pouco transparentes e superficiais. Passei a ser mais ponderada a relacionar-me com os outros”, revelou. A jovem menciona que só voltou a falar com alguém e a explicar a situação quando já estava a ganhar peso. A recuperação e a reintrodução de alguns alimentos foram complexas, mas Teresa não desistiu e deixa um sentimento de que vale sempre a pena lutarmos por nós. “Todo este processo ensinou-me que é fundamental manter-me saudável e escolher melhor as pessoas que me acompanham na vida”, rematou.

Memórias de uma ex-shopaholic

“Essa consciencialização de que isto está a fazer mal ao planeta, está a fazer mal a outras pessoas, de que estou a apoiar uma causa que não é justa.”

Beatriz Cabanilhas vive na margem sul do rio Tejo, Almada. Tem 19 anos e tinha um vício: comprar roupa. Apesar de viver rodeada de uma cultura consumista, percebeu que tinha um problema quando viu a quantidade de roupa que tinha no armário, muita sem nunca ter sido usada.

Atualmente, é difícil distinguir o que é o consumo normal do consumo excessivo, mas Beatriz não tem dúvidas. O que começou por ser um hábito inocente, rapidamente fugiu do controlo. A jovem conta que todas as semanas ia ao centro comercial e que tinha sempre de comprar algo. “Ir às compras tornou-se uma espécie de terapia para lidar com maus sentimentos, fossem eles tristeza, zanga ou desilusão.”, admitiu. Deste modo, admitiu que comprar roupa lhe trazia um sentimento de satisfação. O que realmente lhe dava prazer era a sensação de vestir peças novas. Para além disso, a jovem descreveu, ainda, um impulso que desenvolveu, como se fosse obrigada a consumir. “Perco a noção das horas, perco a noção do espaço e depois saio de lá com uma sensação de felicidade ridícula”.

Beatriz percebeu que tinha um problema quando reparou que tinha roupa no armário que nunca tinha sido usada

Tudo isto começou quando Beatriz mudou do colégio onde andava para uma escola pública, onde sentiu a sua imagem alvo de escrutínio. Os novos colegas apontavam que a jovem se vestia bem e isso foi-se tornando a sua “assinatura”. “Eu comprava roupa nova com o objetivo de me enquadrar melhor num ambiente que era estranho, para ser aceite pelos meus colegas, mas também para me sentir melhor comigo mesma.”

Durante os três anos em que lutou contra esta obsessão, Beatriz não pôde ignorar as repercussões financeiras que este problema lhe trouxe. “Acabava por gastar bastante dinheiro em coisas supérfluas que não tinha necessidade, ia ao centro comercial pelo menos três vezes e gastava cerca de 100€ de cada vez.” No fim, acabava por gastar muito dinheiro, num total de cerca de 300€ por mês. Por sempre ter tido conforto a nível financeiro sentiu o vício facilmente viabilizado. Tinha a possibilidade de comprar o que quisesse e isso não a ajudou a impor limites. Apesar de tudo, a jovem diz que nunca gastou mais do que podia, mas o facto de recorrer maioritariamente a lojas de fast fashion, com peças de roupa a preços mais acessíveis, foi ajudando a alimentar esse vício.

Quanto ao impacto que o vício das compras teve na sua vida, Beatriz reconhece as consequências nas suas relações. A jovem reflete sobre a reprovação da parte da mãe, que a chamava à atenção e não concordava com a justificação que dava para os gastos. No entanto, nunca se revoltou com a filha, pois entendia que este era o mecanismo dela para lidar com a tristeza e frustração. Ainda que não tivesse confessado o problema, sabia que os amigos reparavam que algo se passava. Beatriz conta que o vício chegou a um ponto em que se recusava a repetir um conjunto de roupa. “Queria ter sempre roupa nova para usar.” Assim era inevitável que não reparassem nas suas constantes novas aquisições.

Cerca de 6% da população portuguesa tem uma compulsão por compras

Apesar dos seus efeitos potencialmente destrutivos, o fenómeno da oniomania, ligada à compulsão por compras e descrito pela primeira vez em 1909 por Emil Kraeplin, ainda não é considerado uma doença mental. Em 2014, um estudo da Universidade de Stanford indicou que cerca de 6% da população portuguesa sofre desta perturbação e a grande maioria dos afetados são mulheres, cerca de 92%.

Durante o confinamento obrigatório de abril de 2020, Beatriz começou a lidar com o problema. Por ter ficado tanto tempo em casa, começou a deixar de sentir falta de ir ao centro comercial e de ter roupas novas. “Senti que, de certa forma, já não tinha um propósito de ter coisas novas. Acabei por atenuar o vício consumista e apercebi-me, também, da quantidade excessiva de roupa que comprava.”

Nesse período, através das redes sociais, a jovem começou a tomar conhecimento de todo o impacto associado ao consumismo de fast fashion, fosse ele ambiental ou humanitário. Segundo o Instituto Mundial de Recursos, todos os anos são desperdiçados mais de 82 mil milhões de quilogramas de roupa, em tecidos não biodegradáveis. Em Portugal, 200 mil toneladas de roupa foram registadas em 2017 pelas entidades de processadoras de resíduos urbanos, de acordo com dados da Agência Portuguesa do Ambiente.

A jovem ganhou consciência da cultura consumista em que vive e da facilidade com que substituía algo que ainda está em perfeitas condições. Admite que consumia em excesso e que ganhar consciência do impacto das suas compras foi determinante para que conseguisse interromper o vício. Hoje, Beatriz diz que já não se sente realizada quando vai às compras. Pelo contrário, sente uma certa culpa. “Comecei a estabelecer limites para mim própria, não havia necessidade de fazer compras de mês a mês, até porque tenho muita roupa no armário que nem me faz falta.”

Nunca precisou de recorrer a apoio psicológico, uma vez que foi por iniciativa própria que aprendeu a gerir o impulso. A jovem confessa, no entanto, que este controlo talvez seja só “um efeito colateral do confinamento parcial”, visto que não tem de sair tanto de casa.

Beatriz reconheceu não só todas as implicações do vício, como também o impacto negativo que o mesmo tinha no próprio estado de espírito. Entendeu que não devia apoiar a felicidade no consumo de roupa, mas confessa que ainda hoje sente dificuldade quando sai de casa sem roupa nova. Quando vai às compras faz “um esforço para controlar o impulso” e tenta mentalizar-se de que não vai comprar nada. Para além disso, tem agora consciência de todas as repercussões que o vício poderá ter a nível global e neste sentido confessou que os impactos ambientais e humanos foram decisivos para dizer “basta”. “As compras não têm que ser o meu escape, ainda por cima quando esse vício está a magoar outras pessoas.”

Relato de uma ex-studentholic

“O ato de estudar deve ser algo saudável, que nos faz crescer enquanto seres sociais e humanos. A mim consumia-me.”

De acordo com o INE, a taxa de insucesso escolar no ensino secundário em Portugal Continental foi, em 2018, de 18,7%. Soraia, nome fictício, tem 19 anos, é atual estudante universitária e nunca quis fazer parte desta estatística.

“Não tinha noção do quanto estava a exigir de mim própria, apenas achava que era sempre capaz de mais e melhor”, admitiu Soraia. A jovem tinha um vício que a impedia de conviver e sair de casa, chegando mesmo a ficar dias inteiros a estudar. O cérebro cansado e a falta de convivência social levaram a um estado de elevada ansiedade. Logo a seguir, começaram os ataques de pânico. O facto de pertencer a uma banda musical e achar que não conseguia gerir a sua paixão juntamente com a escola fê-la entrar numa espiral de stress. “Quando estava a estudar sentia que estava a falhar na música e quando estava nos ensaios sentia que estava a falhar na escola. Não sabia fazer uma medição saudável.”

Soraia ficava muitas vezes a estudar até de madrugada e por vezes nem dormia

Soraia chegou a ficar uma semana sem dormir, o que acentuou a preocupação por parte dos pais e do namorado, que presenciaram os sucessivos ataques de pânico e desmaios. “Nós ficámos muito preocupados com ela, não sabíamos mais o que fazer para a ajudar”, explicou a mãe de Soraia. Os relacionamentos sociais foram-se deteriorando com o passar do tempo. A jovem afastou-se dos amigos, que também estavam muito preocupados e faziam de tudo para a tirar de casa. Mas Soraia nunca conseguiu sair, ou porque sentia que tinha de ficar a estudar, ou porque tinha medo de sair de casa e sentir-se mal.

Com a deterioração do estado psicológico, Soraia reconheceu um dia junto dos pais que precisava de ajuda médica, visto que não aguentava mais viver daquela forma. A ida ao psicólogo pela primeira vez partiu de si própria. Os pais foram um grande e fundamental apoio nesta batalha sobretudo quando, em 2017, foi diagnosticada com compulsividade ao nível dos estudos. Foi aconselhada a fazer uma melhor gestão do tempo, dividindo o dia por horas de estudo e de lazer. “A ajuda médica foi essencial na minha recuperação” e graças a isso a jovem aprendeu a conviver com esta sua característica.

Apesar de parecer uma solução fácil, admitiu que vivia numa luta constante e mesmo sabendo que tinha de criar espaço para respirar e fazer coisas que gostava, sentia-se de consciência pesada por não estar a estudar. “Uma adição destas não se deixa de ter, aprendemos a viver com ela e a controlá-la.”

A ansiedade era tal que Soraia chegava a ter ataques de pânico

No que diz respeito à sua recuperação, recorreu a meditação e chás tranquilizantes e apoiou-se também na sua “grande paixão”, a música, para conseguir ultrapassar o problema. No entanto, deixa claro que para se tomar uma decisão destas é necessário consultar a opinião médica e ter um acompanhamento por parte de especialistas. “Recorri a mais de uma psicóloga nesse processo e, por correr tão bem, não precisei de tomar ansiolíticos.”

Hoje é uma jovem completamente diferente, sendo capaz de fazer uma melhor gestão do seu tempo e priorizando os convívios sociais. “Aprendi que há tempo para tudo. Não precisamos de andar a correr contra a vida, precisamos de a viver.”