Num mundo em que as tecnologias digitais estão a provocar rápidas alterações à forma como comunicamos, surgem fenómenos que nos impelem a parar para os poder pensar. A desinformação é um deles. Sendo um tema tão antigo quanto a existência de notícias, existe um largo consenso que alguma coisa nova está realmente a acontecer na forma como informação falsa se espalha nas nossas sociedades. Falámos com especialistas para tentar entender as várias vertentes deste fenómeno.

O sociólogo alemão Jürgen Habermas, no livro A Transformação Estrutural da Esfera Pública publicado em 1961, dá-nos um relato histórico e sociológico de como o surgimento da imprensa escrita está intimamente ligado à progressiva formação de uma nova esfera pública ao longo dos séculos XVIII e XIX. Também a rádio e a televisão vieram remodelar as regras da comunicação pública no século XX.

Aceleramos até 2020 e dentro dos nossos bolsos todos transportamos (pelo menos) um smartphone com acesso a dados móveis de internet. Isto significa que, a qualquer momento, qualquer pessoa pode aceder de forma instantânea a um arquivo gigantesco de informação que deixaria a lendária Biblioteca de Alexandria envergonhada, ou produzir um texto ou um vídeo com potencial de ser visto por milhões de pessoas num curto espaço de tempo. Esta profunda alteração tecnológica produziu uma esfera pública que trouxe consigo uma série de novos fenómenos: blogues, podcasts, redes sociais, memes, novas formas de guerra cibernética entre estados, novas formas de espionagem e, com grande destaque mediático, uma explosão nos fenómenos desinformativos.

Do que estamos a falar quando falamos de desinformação?

A definição de dicionário de desinformação indica-nos que conta como desinformação qualquer informação falsa que seja colocada em circulação com o propósito de enganar. Este não é, portanto, um fenómeno novo, como refere Marisa Silva, professora e investigadora do departamento de comunicação da FCSH: “Podemos falar de formas de desinformação, manipulação e enviesamento da informação sobretudo em alturas críticas como os grandes conflitos mundiais”. Em alturas de crise existe uma tendência histórica para que os fenómenos de desinformação se tornem mais visíveis. Porém, a professora e investigadora refere também que hoje o fenómeno ganha “um novo rosto” devido às alterações tecnológicas.

“Há muita gente a aceder à esfera pública que antes não tinha meios de aceder à esfera pública. E isso cria uma realidade completamente nova”, diz-nos José Moreno.

O investigador no MediaLab, um laboratório de estudo de comunicação do ISCTE, relembra-nos também que o fenómeno da desinformação não é um fenómeno homogéneo ou simples, sendo que existem diversas “agências individuais e grupais” envolvidas.

A desinformação não é binária

Podemos pensar na desinformação como um espectro. Numa das pontas do espectro, encontramos pequenos vieses ou descontextualizações de factos reais. Por exemplo, uma notícia verdadeira de há 10 anos que é colocada a circular hoje nas redes sociais como se fosse atual. Do outro lado do espectro, temos informações falsas associadas a narrativas totalmente falsas.

Fake news, teorias como a terra plana ou a existência de uma elite que quer dizimar parte da população através dos programas de vacinas são exemplos de formas extremas de desinformação. Algures pelo meio do espectro, temos todos os tipos de propaganda.

A acrescentar a esta complexidade no espectro do conteúdo, também encontramos uma realidade complexa ao analisar quem produz desinformação nas redes sociais: tanto pode estar a contribuir para a explosão de desinformação alguém que partilha uma publicação no Facebook por a considerar genuinamente verdadeira, como um aparato estatal militar que esteja a recorrer a inteligência artificial para colocar perfis falsos a difundir propaganda nas redes sociais.

Histórias falsas produzidas por pessoas verdadeiras e difundidas por perfis falsos

Poderia ser um cenário de ficção científica: segundo uma equipa de investigadores da University of Southern California, 15% de todos os utilizadores do Twitter são bots.

Isto significa que 15% das contas de Twitter não são geridas por pessoas reais, mas sim por inteligência artificial que simula a aparência de um ser humano.

Esta equipa de investigadores encontrou evidências de redes de bots a trabalhar para campanhas eleitorais diferentes. Por exemplo, no dia em que Donald Trump foi eleito, cerca de 2.000 contas de Twitter pararam de partilhar conteúdo, e só regressaram ao ativo na primavera de 2017 para partilhar conteúdo em Francês de apoio à candidatura de Marine Le Pen. O próprio Twitter acabaria por confirmar à comissão judiciária do Senado americano que estava na posse de evidências de que cerca de 50.000 bots partilharam o conteúdo do presidente Trump cerca de 500.000 vezes entre setembro e novembro de 2016.

A proliferação de inteligências artificiais a difundir desinformação é, no entanto, uma realidade que ainda não chegou a Portugal, segundo José Moreno. O estudo do MediaLab, do qual fez parte, e que levou a cabo uma investigação ao fenómeno da desinformação em Portugal no período pré-eleitoral nas legislativas de 2019, não encontrou evidências da existência de bots a propagandear informação falsa nos grupos portugueses.

A desinformação no período pré-eleitoral

O estudo levado a cabo pelo MediaLab analisou 47 páginas e 39 grupos de Facebook entre 6 de setembro e 5 de outubro. Durante este período, nestes “viveiros digitais”, a desinformação de cariz político chegou a mais de um milhão de pessoas. O tema principal dos processos desinformativos em Portugal, segundo os dados analisados, é a corrupção.

“O tema da corrupção é de facto central em Portugal, e é outra coisa que nos distingue do resto da Europa. No resto da Europa os temas de desinformação estão normalmente associados a imigração, refugiados e pessoas de outras etnias que vêm para o país”, explica José Moreno.

A sensação de corrupção generalizada no país foi recorrentemente associada a políticos e a outras figuras mediáticas durante o período pré-eleitoral. O alvo mais visado foi António Costa, candidato do Partido Socialista.

Este foi, pelo menos, o cenário antes de outubro. A investigação irá agora analisar dados pós-eleitorais, com vista a verificar se ocorreu alguma alteração com as modificações na configuração política decorrente das eleições. “Temos a certeza de que temos uma situação política diferente depois das eleições e antes das eleições. E isso pode ter influência naquilo que estamos a analisar”, concluiu José Moreno.

A desinformação e as suas fronteiras

A Internet gerou o espaço para o surgimento de uma nova esfera pública com novas formas de interação. Porém, a tecnologia não existe num vácuo. A desinformação não é alheia à questão cultural ou à questão política, como o grupo de investigação do MediaLab demonstrou. Diferentes países geram diferentes fenómenos desinformativos com base em temas distintos, e esta desinformação pode estar associada a campanhas ou a diferentes momentos políticos. As alegadas interferências russas nos processos democráticos de outros países demonstram também claras motivações geopolíticas.

Por outro lado, o escândalo da Cambridge Analytica revelou que a desinformação e a privacidade são também dois pólos que se cruzam na nova esfera pública. Segundo a investigação levada a cabo pela BBC em 2018, e os depoimentos que Mark Zuckerberg (o dono do Facebook) foi forçado a dar perante o Senado americano e o Parlamento Europeu nesse mesmo ano, a empresa Cambridge Analytica conseguiu, com relativa facilidade, recolher informação privada que milhões de pessoas colocaram no Facebook durante anos. As estimativas variam entre 50 e 80 milhões de pessoas afetadas.

A informação recolhida foi utilizada para entender os seus gostos, preferências, crenças políticas e religiosas e até os seus tipos de personalidade (através da tipologia “Big Five”). Esses perfis individualizados foram depois utilizados para gerar propaganda política ultra-personalizada e direcionada. Da perspetiva do utilizador que recebia a propaganda, na maioria dos casos desconhecedor destes processos tecnológicos, a propaganda simplesmente aparecia no ecrã no meio das fotografias e publicações de amigos.

Para além dos objetivos políticos das campanhas em que a Cambridge Analytica esteve envolvida (como a de Donald Trump ou a do Brexit), podemos falar também de objetivos mercantis: prestar um bom serviço e receber o pagamento correspondente. Este novo tipo de propaganda política ultra-direcionada acabou por gerar uma discussão sobre as fronteiras entre propaganda, desinformação e espionagem digital que perdura até hoje.

Outra fronteira que tem vindo a ser debatida é aquela que separa a desinformação, a opinião e a liberdade de expressão. Ter e partilhar livremente opiniões falsas não é um direito inalienável do processo democrático? Como é que podemos lidar com fenómenos desinformativos sem colocar em causa liberdades e garantias fundamentais?

Não há uma solução catch it all

Inês Narciso, que é investigadora do MediaLab do ISCTE-IUL e também participou no estudo de análise à desinformação digital em Portugal, sublinha que a remoção de conteúdo desinformativo não é uma das sugestões do laboratório, e refere-nos que não existe uma solução única para o problema.

“Cada característica [do problema] tem soluções próprias. Não podemos ir à procura de apenas uma solução”.

Uma das técnicas de desinformação mais comuns encontradas pelo estudo do MediaLab foi a desinformação por reciclagem: pegar na hiperligação de uma notícia antiga e publicá-la de novo nas redes sociais como se fosse atual. Segundo a investigadora, este tipo específico de desinformação poderia ser facilmente resolvido através de uma indicação mais clara de qual é a data correspondente à notícia.

Esta indicação poderia ser mais visível na própria rede social; mas também poderia ser indicada com maior relevo nas próprias páginas dos órgãos de comunicação social, através de algo tão simples quanto “colocar cores sépias” em notícias antigas. Isto implicaria uma separação mais clara entre as notícias atuais e as que já se podem considerar de arquivo. Esta solução permitiria “que as notícias continuassem passíveis de serem consultadas e partilhadas, mas que o utilizador automaticamente as identificasse como algo antigo”, conclui.

“É preciso saber o que queremos combater”, refere-nos Marta Carvalho, do departamento jurídico da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que coordenou um relatório da entidade sobre o fenómeno da desinformação (que ainda não se encontra concluído). A jurista sublinha que o papel da ERC é regular a comunicação social no país e que, portanto, a ERC só poderá e deverá atuar em casos relacionados com órgãos de comunicação social. Refere, no entanto, que na nova realidade online é um pouco “difícil discernir o que é de facto um órgão de comunicação social”.

“A lei de imprensa tem que ser totalmente revista. A lei de imprensa é aplicada sempre por analogia às publicações periódicas online”, refere a jurista. Ao contrário da Lei da Televisão ou da Lei da Rádio “que já contém provisões específicas para realidades online”, em termos de imprensa escrita a lei é omissa. Esta alteração por parte do legislador seria um necessário esclarecimento.

A multiplicação de websites que se apresentam como sendo de comunicação social sem o serem tem gerado diversas queixas junto da ERC sem que a entidade reguladora lhes possa dar resposta.

“Princípios basilares” da comunicação social em Portugal como o direito de resposta ou o direito de retificação não são aplicáveis nestas páginas que simulam a aparência de um órgão jornalístico.

É necessário evitar o pessimismo tecnológico

A académica irlandesa Angela Nagle, no seu livro Kill All The Normies publicado em 2017, dá-nos conta de um progressivo desencantamento dos jornalistas e académicos perante a tecnologia. Se no início da década se vivia uma época de entusiasmo em relação às novas possibilidades do digital, com o passar dos anos essa euforia deu lugar a um desencantamento quase distópico.

José Moreno, no entanto, considera que nem tudo é negativo com a entrada de mais pessoas na esfera pública. Se este aumento de produtores de comunicação trouxe mais desinformação, trouxe também a Wikipédia. Também a professora Marisa Silva considera que encontra imensas “potencialidades” positivas no digital, mesmo para o jornalismo, como o “descobrir novas histórias” ou a “abertura com o público”.

A desinformação é um dos fenómenos mais visíveis da nova esfera pública, mas não é o único. Ela abriu o caminho para novas guerras de informação e desinformação entre estados, assim como para a viralização de conteúdos completamente falsos muitas vezes produzidos por pessoas genuinamente crédulas. Porém, também abriu espaço para novas formas de colaboração na construção de conhecimento. A diferença entre estes dois pólos é a diferença entre pesquisar no Google “porque é que a Terra é plana” ou pesquisar “o que é a física quântica”.

Nota sobre a experiência de realidade aumentada: precisa de fazer download da aplicação Zappar (disponível para Android e iOS) para o seu telemóvel. Se, dentro da aplicação, apontar a câmara para as imagens da fotogaleria, ouvirá uma explicação sobre como aquelas obras exploram o tema da desinformação.