É dia de festa e ninguém olha para o relógio. Não importa que a hora do lanche tenha chegado e que os pratos do almoço continuem na mesa, não importa que o chão dos quartos tenha virado colchão para os que por ali quiserem passar a noite, nem mesmo interessa que a aniversariante não tenha chegado ainda; afinal, ela sempre aqui esteve. É que quem comemora mais cem anos é a própria casa – a república Rás-Te-Parta.
As velas são, por isso, apagadas pelos repúblicos que dela partiram ou que a ela chegaram e os votos de parabéns são escritos nas próprias paredes, assim como as memórias de quem a conheceu.
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A tabuleta com a expressão “O arroto é livre” coroa uma das paredes da sala de convívio. A metáfora, eleita lema da casa, compara o arroto à palavra e deixa antever que a liberdade de
opinião é soberana na Rás-Te-Parta.

Os repúblicos garantem que a própria casa conta as histórias de quem por ela passou. Entre roupas quase desfeitas e breves ou extensas mensagens, as paredes leem-se como as páginas de um diário.

Se ao descobrir a república da Rua da Matemática os preconceitos ficam do lado de fora da porta de entrada, também entre os objetos se esbatem quaisquer fronteiras. Talvez assim se explique a harmoniosa coexistência de cravos vermelhos, bandeirolas de festa e cupões de hipermercado.

Em dia de centenário, todas as janelas se abrem ao calor ainda tímido da primavera. Do lado de lá do Mondego, torna-se fácil reconhecer o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova.

A cada aniversário, multiplicam-se os colchões espalhados pelos quartos para dar guarida a todos os antigos que já tinham acenado um “até breve” à Rás-Te-Parta.

Na Rás-Te-Parta, as portas resumem as histórias das divisões e
daqueles que as habitam. Entre iniciais de nomes, autocolantes
de discotecas e placas peculiares, há silhuetas que se vão definindo.

Em dia de aniversário, toda a cidade é bem-vinda. Até voltar a ser dia, altura em que terminam os festejos, a porta está sempre aberta.

A insígnia da Rás-Te-Parta avista-se da rua da Matemática. Surge imponente e iluminada, para não passar despercebida a ninguém.

A vista da Rás-Te-Parta sobre a cidade é tida pelos repúblicos como “única”. Estes asseguram até que esta é capaz de transformar a imagem que os estudantes têm de Coimbra, pois daqui se vê o outro lado do que vem nos cartões de visita.

Seja nas paredes ou nas mesas, do chão ao teto, a Rás-Te-Parta está maquilhada à medida de quem por lá passa. Todos vão deixando um pouco de si e eis um dos resultados.

Por toda a república há quadros e outro género de figuras. Muitos representam a tradição, noutros está pintada Coimbra, e não faltam retratos de personalidades célebres que viveram lutando pela liberdade.

Ao longo da escadaria vislumbra-se a tradição coimbrã: há livros novos e antigos e cartazes da Queima das Fitas com mais de meio século. Mas sobra ainda lugar para o presente, não estivessem nela penduradas as toalhas de banho de alguns repúblicos.

Os livros, as ilustrações e o reaproveitamento de objetos são o meio de expressão dos residentes. As faculdades marcam presença com as bengalas dos finalistas que por aqui passaram. Os vinis e os cadernos contam as histórias dos estudantes de Coimbra que decidiram entrar nesta casa de malas abertas às experiências que as conseguissem encher.

Quem por aqui passa compreende o viver de uma república através das ilustrações feitas pelas mãos de quem nela vive e viveu. De copo na mão, o álcool é bem-vindo e recebido como um desinibidor. Na camisa pendurada no início do corredor, repousam duas garrafas de cerveja vazias que não deixam esquecer este elemento.

As salas ganham vida com a entrada e saída de pessoas. Num ambiente labiríntico, uma porta dá acesso a outra passagem que, por sua vez, conduz a lugares recônditos desta pousada. O ambivalismo entre o consumismo, representado pela Coca-Cola, e a imagem de duas personalidades que contra isso lutavam, diz a quem vê que a luta dos repúblicos passa também por esbater esta realidade. O espírito reivindicativo diferencia a família que aqui é criada.