“Brincar ao Carnaval”, mudando de personalidade tão rapidamente como quem liga um interruptor – ou não. Cosplay, a arte de interpretar uma personagem, é, aos olhos do público, mais uma forma de entretenimento. Mas, para quem o pratica, é um escape à realidade, em que uma identidade é junção de várias. E, por vezes, com uma boa dose de autodescoberta pelo caminho.

Define-se no dicionário como uma “atividade que consiste em vestir-se, caracterizar-se e comportar-se como uma personagem”. O movimento como o conhecemos hoje nasceu no Japão, quando na década de 80 os primeiros cosplayers encarnaram a pele dos seus protagonistas favoritos de mangas, animes, comics e videojogos. Ainda hoje, este é um país de referência para quem faz Cosplay por todo o mundo.

A arte dos sete ofícios

Quando Leonor Grácias era criança, o hábito de se mascarar de personagem animada era brincadeira assídua. Nessa altura, revela, “brincava ao Carnaval” fora da época festiva, porque ainda não existia a palavra cosplay (pelo menos era assim que pensava). A idade fez com que abandonasse este tipo de brincadeiras, mas o bichinho de encarnar novas personagens foi crescendo. Era presença assídua no Carnaval, muitas das vezes escolhendo personagens fora do normal para crianças e adolescentes ou até mesmo desconhecidas para muitos deles. Mas os festejos sabiam a pouco e, assim que acabavam, ficava o desejo de prolongar a experiência para lá dos três dias.

Aos 12 anos, embrenhou-se de tal forma no mundo dos desenhos animados típicos do início dos anos 90 e séries de Manga que começou a pesquisar mais sobre eles. Do Dragon Ball às Navegantes da Lua, sem esquecer Samurai X e Tsubasa Chronicles. Todos eram alvo de uma intensa pesquisa que satisfazia ou intensificava ainda mais a curiosidade por cada uma das personagens. De todas elas, a favorita era Sakura de Tsubasa Chronicles — personagem que interpretou no seu primeiro cosplay. Figura tímida e frágil. Um espelho da adolescente Leonor.

Leonor Grácias como Sakura, de Tsubasa Chronicles. Foto: Cortesida de Leonor Grácias

“Ela era muito frágil, tinha muitos problemas em abrir-se com os outros e só mesmo no último minuto é que ganhava forças para tentar salvar os seus amigos”, explica em entrevista ao REC. “Chorava muito por não saber lidar com as suas emoções, por não saber lidar com as outras pessoas, com o facto de ser fraca e de ser um peso. Eu naquela altura tinha 15 anos e sentia-me assim. Sentia-me frágil.” Fazer cosplay era uma forma de se abstrair da realidade.

Hoje, aos 31 anos, o estado emocional, assegura, é tudo menos frágil. De outro modo, não se conseguiria exercer as suas funções na direção da Associação de Cosplay, onde “parte da comunidade não gosta da presidente”, atira. Fundou-a com o objetivo de dinamizar o que ainda não é considerado arte em Portugal, mas sem nunca deixar de lado a tentativa de juntar o que diz ser uma falsa comunidade que não luta pelos mesmos ideais. “A grande maioria dos cosplayers só chama isto de comunidade, porque não se dão ao trabalho de ir pesquisar ao dicionário o significado da palavra. Isto não é uma comunidade, é um nicho de pessoas que gostam da mesma coisa”, enfatiza.

Manter contacto com a adolescente tímida que escrevia as suas próprias histórias e inventava novos enredos nunca foi uma necessidade, mas a verdade é que a escrita para este mundo voltaria a preencher as folhas do caderno — mas desta vez, para contar a sua própria história. Em 2019, escreveu o “Manual de Cosplay”, primeiro livro português sobre esta arte. Uma oportunidade que surgiu com um telefonema por parte de uma das editoras da Leya e que descreve como “um sonho tornado realidade”. “Tinha comprado o livro da Nikita Cosplay que é uma cosplayer francesa e pensei ir a uma editora pedir para o traduzirem. Nunca pensei em escrever um. Nem sabia o que dizer.”

Leonor Grácias como Esther Blanchett, de Trinity Blood. Foto: Cortesia de Leonor Grácias

Presidente, escritora, designer, atriz, costureira, videografa, fotógrafa. Talentos não lhe faltam e talvez seja por isso que diz não saber qual a vocação que melhor lhe assenta. “Até já trabalhei com folhas de metal e eletrónica”, assegura, não estivéssemos a falar da mulher dos sete ofícios.

Áudio: Para Leonor Grácias, o cosplay “pode ser tudo”. É uma “aglomeração de artes”

Atualmente trabalha como marketeer, mas define-se como cosplayer. Mas afinal, o que é o cosplay? “É um teste à nossa própria personalidade. O cosplay é como se fosse um trabalho de ator, porque temos de interpretar a nossa personagem no palco com centenas de pessoas a olharem para nós e, corra mal ou corra bem, nunca podemos sair dela”, explica. Quando reflete sobre estas palavras e pensa na adolescente que não queria sair de casa e que nunca ousaria subir a um palco e ser o centro das atenções, ainda que por breves instantes, tem dificuldade em perceber que é a mesma pessoa.

Já deu espetáculos, muitos deles remunerados, situação que atualmente não é possível. “O cosplay podia estar melhor em Portugal” se fosse considerado uma arte e não um hobby. No caso de Leonor, a preparação começa na maquilhagem, mas é a partir do momento em que coloca a peruca que a personagem começa a “sair cá para fora”. “Só deixo de ser a minha personagem quando chego a casa e tiro a última lente do meu olho”, conclui.

Como “ligar um interruptor”

Alterar por completo a sua identidade – da personalidade ao género – é, para Íris Pinto, tão fácil como “ligar um interruptor”. Num mundo fictício que parece nunca mais acabar, a cosplayer de 21 anos assume a pele de qualquer personagem que lhe desperte o interesse.

Contudo, foi um rosto particularmente conhecido do universo D.C. que, há cinco anos, fez nascer em Íris o bichinho da transformação. Harley Quinn, cujo fato, comprado pelo pai da jovem, lhe assentou como uma luva no dia em que o usou pela primeira vez, numa convenção. “Sentia-me extrovertida como ela e andava a sorrir de um lado para o outro, parecia outra pessoa! Depois, fiquei com o amor por isso. (…) Ou seja, a Harley Quinn foi o que me fez começar a fazer cosplays”, relata, em entrevista ao REC.

Após um período de pausa, voltou à prática no ano passado, com a chegada da primeira quarentena causada pela pandemia de Covid-19. Criou uma conta de Instagram para divulgar o seu trabalho e, desde aí, nunca mais parou. Com adereços comprados na internet, feitos por si ou provenientes do guarda-roupa de familiares, faz cosplay “todas as semanas”, algo que se tornou numa “escapatória” para a estudante de psicologia.

Áudio: Íris Pinto vê a arte de fazer cosplay como uma “escapatória” que a liberta do stress

Estar na pele de uma personagem evoca, segundo Íris, “uma sensação diferente”, através da influência direta no seu estado emocional. “Às vezes, até faço cosplay de uma certa personagem se me quiser sentir daquela maneira”, confessa.

Ainda assim, acontece que a personagem que mais conquistou a cosplayer é também a mais fácil de representar – basta ser ela própria. Ibuki Mioda, da série de videojogos Danganronpa, é uma amante de música extremamente extrovertida e bem-humorada, um autêntico reflexo de Íris Pinto: “eu sinto-me mesmo muito conectada a ela e sinto que posso ser eu e livre quando estou a fazer dela”.

Da máquina de costura às conversas em frente ao espelho

Foi no armário dos pais que Beatriz Bastos encontrou o seu primeiro cosplay. A personagem era o Décimo Primeiro Doutor, da série de ficção científica Doctor Who, e foi uma amiga da escola que, em 2015, a “arrastou” até à sua primeira convenção. “Comecei a ser abordada, as pessoas começaram a pedir-me fotografias e começou a acender alguma coisa cá dentro”, conta a jovem de 20 anos ao REC.

Hoje, estuda Línguas e Relações Internacionais na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e admite que, olhando para trás, não é nada de estranho gostar de fazer cosplay. “Eu sempre gostei de me vestir de uma maneira um bocadinho mais alternativa”, confessa, admitindo que o seu interesse pela moda facilitou o passatempo, acrescentando “repertório” às personagens. Adora bordar e alterar peças de roupa, moldando-as à realidade que pretende interpretar. Define o seu passatempo como “espontâneo”, já que se vê “limitada apenas por uma agulha e uma máquina de costura”.

Áudio: Beatriz Bastos define o seu cosplay como “divertido e espontâneo”

Para Beatriz, o Cosplay é “homenagear” aquilo de que gosta, quer sejam personagens de animes, filmes ou dos livros que devora em “quantidades industriais”. No período da adolescência foi também uma maneira de, mudando o aspeto, se encontrar. “Comecei a olhar para o espelho e a ver uma pessoa diferente, mas simultaneamente a sentir-me mais confiante no meu próprio corpo”, revela a jovem.

Apesar de “libertador”, vestir o fato de mulher no mundo do cosplay pode tornar-se desconfortável. “Sinto que as pessoas acham que por estarem com uma cosplayer mulher podem ter mais liberdades do que se fosse com um homem”, afirma, desmentindo a ideia comum de que a atividade é mais direcionada para o público feminino. “Acho que não há mais popularidade para um lado ou para o outro, vem da popularidade da personagem no momento e do talento da pessoa”.

A personagem que mais gosta de interpretar e pela qual é já “mais conhecida” é Ciel Phantomhive, do anime Black Butler, não por achar que são parecidos – “até porque eu sou uma mulher de 20 anos e ele é um rapazinho de 13”, sublinha –, mas por ser uma personagem “muito neutra” em termos de identidade de género, o que lhe permite “puxar um bocadinho os aspetos menos relacionados ao género da personalidade dele e trazer uma performance o mais genuína possível”. Isto porque adotar uma nova identidade passa muito por um estudo e por um treino que Beatriz segue à risca.

Antes das convenções, revê o conteúdo de onde nasceu aquela personagem, adaptando-se a ela o máximo possível. “Tento, mesmo ao espelho, imitar aquilo que eles dizem ou mesmo ter conversas por mensagem com amigos como se fosse aquela personagem, tentar encarnar aquela personagem até que se torne mais natural tornar-me noutra pessoa”, confessa.

Vestir uma armadura como forma de terapia

Leonardo Lucas, de 26 anos, começou a fazer cosplay aos 19 anos como uma forma de se expressar a “nível artístico”. Como grande parte dos cosplayers, dedicava grande parte dos tempos livres a jogos, filmes, bandas desenhadas e animes, algo que despertou a vontade de trazer isso para “a vida real”.

Para Leonardo, fazer cosplay traz consigo um misto de sensações. Cada personagem é um projeto que dura “meses a fazer” e exige muita dedicação. Por isso, o momento em que veste os fatos e se apresenta perante o público é reconfortante, traz “memórias boas” e funciona como uma “terapia”.

O cosplayer revela ainda ao REC, que, ao contrário de quem altera por completo a sua identidade, não sente necessidade de encarnar a personagem. “Sou eu, não mudo a minha maneira de ser”, conta. Por baixo do fato, existe apenas a pessoa.

Leonardo costuma interpretar personagens que usam “armaduras” e indumentárias mais pesadas, um estilo praticado geralmente por homens. Assim, mesmo que o cosplay seja encarado como um meio maioritariamente feminino, não sente preconceito – mesmo que isso se deva ao tipo de cosplay que faz: “quando se pensa em armaduras grandes, as pessoas visionam logo um homem lá dentro”.

Áudio: Leonardo Lucas sobre o fenómeno relativamente recente dos fatos mais pesados, mais utilizados por homens

Para o cosplayer de 26 anos, o crescimento do número de homens a praticar esta arte deve-se ao surgimento dos fatos com armaduras, um estilo que surgiu há cerca de 7 anos e que é visto como algo mais masculino do que “usar fatos de tecido”.

Leonardo Lucas opta por ocultar o rosto em grande parte dos cosplay que faz. Foto: Cortesia de Leonardo Lucas

Por isso, Leonardo acha que esse facto talvez influenciasse “alguns homens” a não fazer cosplay. Ele próprio confessa que “nunca teria feito cosplay se não fosse esse estilo de fatos”.

As personagens que interpreta – escolhidas tendo como critério principal a sua aparência – têm o rosto encoberto. Uma escolha que advém do facto de Leonardo, na altura em que começou, ser mais introvertido, mas que se manteve, apenas “por estética”.

A quem quer entrar no mundo do cosplay, Leonardo Lucas garante que, se o fizer, vai “conhecer gente com quem se vão identificar imenso e vão passar algumas das melhores experiências”. Por fim, aconselha a ir a um evento ou convenção, porque o tipo de atmosfera energética que lá se vive é, segundo o cosplayer, “viciante”.

Assumir outra identidade rumo à autodescoberta

Manon, nome artístico de Joshua Ramires, afirma que o cosplay mudou a sua vida ao nível psicológico, porque sempre foi ”um bocadinho antissocial, tímido”. Nos momentos em que está em cosplay consegue libertar-se, “sair da casca, ser alguém que não é no dia a dia”. Além disso, esta arte permitiu-lhe aprender a costurar, esterilizar perucas e maquilhar-se sozinho, entre outras valências.

Joshua tem 32 anos e é um homem transgénero, e revela que a arte do cosplay ajudou-o no processo de descoberta, a aperceber-se que “havia qualquer coisa que precisava de mudar” dentro dele. “Fazia personagens femininas e gostava do que estava a fazer”, mas, quando fez personagens masculinas, começou a perceber que “havia qualquer coisa de errado”.

Áudio: Foi a representação de personagens masculinas que fez Manon perceber que algo precisava de mudar dentro de si

Interpretar personagens mais masculinas permite-lhe sentir “a euforia gigantesca que é esse sentimento”. O processo de escolha das personagens não tem uma fronteira rígida no que toca ao género, o importante é conseguir “sentir a euforia do masculino” – que pode ser atingida através da exploração do género fluído ou da feminilidade.

Joshua Ramires como Kaneki, do anime Tokyo Ghoul. Foto: Cortesia de Joshua Ramires

Joshua Ramires já participou 2 vezes no campeonato do mundo do Japão em 2014 e 2018. Ambas as vezes com a companhia de Leonor Grácias, presidente da Associação Portuguesa de Cosplay.

As competições são momentos em que há muito stresse para preparar tudo, “às vezes as coisas atrasam” e é preciso acabar os fatos no backstage do palco. Por isso, quando finalmente veste tudo e “acaba aquele sofrimento, aquele deadline, é a sensação mais libertadora do mundo, porque é só interpretação no palco ou andar pelo evento”, admite.

Joshua Ramires como Conde de Monte Cristo, do videojogo Fate Grand Order. Foto: Cortesia de Joshua Ramires

Joshua é fotógrafo desde 2010 e é exatamente a vertente da fotografia o que mais o fascina no mundo do cosplay, seja para se fotografar a si mesmo ou a outros cosplayers. Aliás, foi Manon que fotografou Leonor Grácias para o livro da presidente da Associação de Cosplay.

Na opinião de Manon, toda a gente pode fazer cosplay. Não existem requisitos – basta ter “força de vontade e amor às personagens”, conclui.