Uma viagem pelas memórias dos têxteis à descoberta da antiga fábrica de lanifícios que virou laboratório criativo.

A água da ribeira, que tem o nome de Carpinteira, corre depressa por entre as encostas da serra. O som da torrente funde-se com o cantarolar dos pássaros e o percurso da água cruza-se com dezenas de fábricas, quase todas em ruínas. Recuando alguns anos quase conseguimos escutar o ruído das máquinas e das vozes dos operários que não tinham mãos a medir com tanto trabalho. Atualmente, são poucas as vozes que por aqui se ouvem.

Contudo, descendo o vale, damos conta de uma fábrica peculiar. As janelas intactas, as paredes pintadas de branco e os portões abertos fazem-nos crer que ainda há vida dentro destas gigantescas paredes. A antiga fábrica de lanifícios António Estrela, propriedade da família Afonso é, desde 2013, reconhecida como uma indústria criativa e cultural da Covilhã. A história desta fábrica do setor têxtil é semelhante a quase todas as outras da região: com a crise económica e financeira que o país atravessou, viu-se obrigada a encerrar portas no ano de 2002. A laboração parou, mas a manutenção do edifício foi sendo assegurada e assim se manteve até 2013.

Francisco Afonso, mentor e fundador do New Hand Lab

Nesse ano, houve um olhar diferente para as coisas, explica Francisco Afonso, antigo operário e proprietário da fábrica que está nas mãos da sua família há mais de 100 anos. “Olhando para este espaço, grande e rico de materiais, que estava parado, resolvemos criar o New Hand Lab – o novo laboratório de mãos, onde se reúne um conjunto de autores, ateliês e se desenvolve a parte criativa”, conta o empreendedor, falando no plural por incluir no projeto a sua esposa e toda a família que ainda hoje suporta as despesas do edifício.

Assim, a família Afonso decidiu dar vida a este espaço de grandes dimensões, com três pisos amplos, para que não fosse mais um “monstro abandonado na cidade”, palavras do empreendedor. Com sete anos de existência, o New Hand Lab tem vários autores a usarem o espaço em simultâneo. Hoje conta com cerca de 12 pessoas, entre eles um estilista, Miguel Gigante; um professor de escrita criativa, Nuno Jerónimo; um fotógrafo, João Pedro Silva; entre outros que aqui desenvolvem os seus trabalhos e deixam o seu contributo.

O espaço está em constante mutação, correspondendo às necessidades dos artistas, dos visitantes e dos diferentes eventos, que vão desde sessões fotográficas, aulas de escrita criativa e até desfiles de moda. Este é um espaço único aberto à comunidade, em que ninguém é contratado, todos são convidados a desenvolver os seus trabalhos criativos na antiga fábrica.

Sessão do curso de Escrita Criativa no New Hand Lab

Ao percorrer o edifício, podemos encontrar um conjunto de máquinas transformadoras de lã, todas elas com a particularidade de terem sido produzidas na Covilhã. Além de diversos equipamentos que se mantiveram desde a época em que a fábrica produzia tecido, existe também um espaço de pesquisa arqueológica.

Todo o espaço está repleto de peças artísticas que contam histórias apaixonantes relacionadas com a fase industrial da cidade. O conjunto destes elementos faz com que o lugar seja rico em cultura e história, que se assemelha a um enorme museu com diversas valências. Aberto à comunidade, o New Hand Lab tem sido procurado para a realização de eventos culturais e criativos que dão uma nova vida à cidade. O edifício é candidato a imóvel de interesse público e tem o apoio do Turismo de Portugal, na divulgação e promoção do espaço.

Este projeto é já uma referência nacional e internacional, prova disso são as notícias que têm sido publicadas nos meios de comunicação de outros países. A sua singularidade e reconhecimento motiva os autores do projeto a fazer mais e melhor a cada dia. João Pedro Silva, fotógrafo natural da Covilhã, integra o projeto desde a sua criação. Tem aqui os seus estúdios, um no piso superior, outro no piso inferior. No seu ponto de vista, “a grande mais valia de um projeto colaborativo como este é a partilha de experiências”.

É com um sorriso no rosto que João Pedro Silva descreve a sua experiência no New Hand Lab: “Se estivesse sozinho no estúdio, dependia única e exclusivamente de mim, estando num espaço partilhado por outros colegas e amigos, faz com que eles facilmente deem feedback do meu trabalho – é networking”. Um desses amigos é Nuno Jerónimo, professor na UBI e colaborador do projeto nos tempos livres. Foi através de João Pedro Silva que o docente conheceu a fábrica de talentos, recebendo o convite da equipa para escrever textos sobre cada um dos autores da fábrica e vestir a pele de escritor do New Hand Lab. Nuno Jerónimo olha para o projeto de forma romântica, incentivando outras pessoas a criarem algo dentro destas paredes.

Agora, o seu envolvimento ultrapassa a escrita de pequenos textos. Nuno Jerónimo é orientador de alunos do mestrado em Comunicação Estratégica na Universidade da Beira Interior, que aqui desenvolvem os seus projetos de comunicação. Foi assim criado o que diz ser uma espécie de gabinete de comunicação. Como professor de disciplinas como Sociologia da Cultura ou Escrita Criativa, é com agrado que o docente vê a sua colaboração neste projeto. A paixão que Nuno Jerónimo tem pelo espaço dá-lhe motivação para trazer alunos e lecionar as aulas aqui, como já aconteceu algumas vezes.

A união entre pessoas de várias áreas e com diferentes formações “traz a cada um a destreza de aprender a lidar com pessoas que veem o mundo de forma diferente e não são absolutamente unânimes”, afirma Nuno Jerónimo. Todos aprendem diariamente uns com outros e o projeto é a soma das diferentes perspetivas. Os colaboradores concordam que este é um conceito que traz à cidade algo inovador.

A imagem da Covilhã continua a ser a das fábricas em degradação e abandono total, desde a Carpinteira às Poldras e é esta imagem que estes empreendedores gostariam que se alterasse. Nuno Jerónimo destaca as posibilidades que existem nos antigos espaços e realça o que vê quando olha para o New Hand Lab. “É interessante o jogo entre o antigo e o moderno, entre a memória e a ideia visionária, entre aquilo que é a fábrica têxtil, a sua organização e o seu aspeto estético”.